Alguma utilidade?

Apenas um pouco do que escrevo. Gotas da pretensão que assombra a juventude: a maldita idade lírica, da extrema eloquência com a grande arrogância. Resta apenas desorientação.

Pesquisar este blog

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Presságios

“Se você vier me perguntar por onde andei / No tempo em que você sonhava/ De olhos abertos, lhe direi: / Amigo, eu me desesperava”.
(A Palo Seco – Belchior)
                
             O primeiro presságio estava nos olhos do pai. Ela soube, sem entender muito bem como e por que, que o estava perdendo. Ela, “a menina dourada, a pequena heroína, seu maior presente”, de repente não significava tanto assim. Ela pressentiu porque não lhe deram outra palavra, apenas lhe disseram que garotas tinham intuição. Mas, na verdade, ela sabia. Sabia que crescia e que ele temeu não a ter mais. Ela bem poderia ter entendido se ele tivesse explicado, dito com calma, deixado claro que a posse egoísta era parte do seu amor, mas não todo ele e que ele aprenderia a lidar com a adolescência. Ele não disse palavra, apenas se foi, distante, sem colo, sem abraço, aquele olhar duro e petrificado de quem procurava nela um passado que jamais voltaria.
           Ela se resignou, mimetizava rápido qualquer papel que lhe dessem. O presságio, contudo, inaugurou uma nova era, a partir da qual muitos outros viriam: ela era a garota que sempre sabia o que não lhe diziam, mas entendia bem os perigos de verbalizar. Afinal, ninguém poderia suspeitar que ela tinha presságios. Não que ela os considerasse presságios, porque havia toneladas de sinais objetivos: eles estavam sempre gravados nos olhos alheios, na posição das coisas, na maquiagem, nas expressões faciais, no que lhe mostravam sem dizer, no que lhe sugeriam sem explicar, no silêncio que sustentava ordens invisíveis.
Todavia, ela também compreendia que presságios eram bruxaria, trevas, irracionalismo, obscurantismo e ela não queria ser queimada. Não queria a distância de novo, queria o afeto que davam à menina, mas também queria ser a mulher que escolhesse ser. A adolescência, entretanto, veio para tornar essa missão mais difícil. Os cabelos presos, as saias longas, os óculos fundos, o arquétipo-modelo. Estudiosa, gentil, sorridente com todos, coadjuvante perfeita: teve o presságio de que esse era o melhor caminho a seguir.
Ela assistiu paciente suas amigas trocarem inúmeras vezes de namorado, mas não sentiu inveja. Sim, teve curiosidade, vontade, e, muitas vezes, cansou-se de sua solidão. Contudo, amava seu rico universo interior, a empatia que lhe proporcionava tantas relações, os livros que lhe ofereciam tanto conforto, os planos de fuga que lhe davam tanta motivação.
Ainda assim, eventualmente veio o primeiro namorado. Ele aproximou-se devagar, com delicadeza e insegurança. Como ela, tímido e gentil. E ela se sentiu, pela primeira vez em anos, menos sozinha. Com o tempo e a intimidade, entretanto, a natureza da relação foi mudando drasticamente. Os presságios voltaram quando ele passou a questioná-la sobre todos os passos, quando a gentileza e a timidez tornaram-se narcisismo voluntarista. Ela, novamente, sentia-se infinitamente cansada: descobriu que ainda estava sozinha, mas já não era mais livre. Fora um dia? A vida reduzida a agradar um outro que jamais sorria, uma corrida sem fim. Então o desejo nela morreu, mas ela não sabia como falar sobre isso. Ninguém jamais havia lhe contado sobre desejos, ela era apenas pressentimento e intuição. Seguiram-se meses de sexo unilateral, não verbal e cada vez mais agressivo.
Ela não precisou fazer o teste para saber que estava grávida e nem precisou pressentir para entender que jamais veria o namorado de novo.  Que perderia o pai para sempre. Que seu útero a serviço da sociedade era também sua letra escarlate, uma vergonha pela qual sua mãe também seria responsabilizada.  Ficou o pressentimento de que ela deveria ter esse bebe, porque isso também estava gravado na linguagem corporal da diretora do colégio no dia em que conversaram: cabeça levemente inclinada, olhar perdido num misto entre pena e condescendência, sorriso falsamente acolhedor e palavras de ordem. “Sexo implica responsabilidade, você ainda tem muita vida pela frente, agora deve assumir as consequências de seus atos”.
Com um certo sentido de dignidade, ela assumiu. Foi assunto da cidade por meses, mas seguiu sem olhar para o lado, sua letra escarlate cada vez mais exposta na barriga que crescia, nos seios que inchavam, na solidão profunda da maternidade. Solidão que se pressente, mas também não se nomeia, porque não se nomeia aquilo sobre o que não se fala. No quarto mês, sofreu um aborto espontâneo. Repreendeu-se: abortista, ela deveria ter pressentido antes que havia algo errado, a marca da desgraça nos olhos sem brilho do pai, no namorado desaparecido, no sorriso amarelo da diretora da escola, no desespero profundo da respiração carregada da mãe.
Também por isso, não questionou as amigas que dela se afastaram e jamais ofereceram qualquer tipo de suporte durante toda essa prova.  Compreendia que elas também tinham seus presságios e neles a amiga grávida só poderia ser um mau agouro. No fundo, sentia-se culpada, mesmo sabendo ter cumprido exemplarmente o papel que desenharam para ela. Voltou para a escola apenas para descobrir que nenhuma letra escarlate é apagada durante a adolescência. Seguiu mais sozinha, cada vez mais determinada. Tentou tanto não ser queimada, mas acabou bruxa do mesmo jeito. Após tantos anos de presságios, devia ter aprendido melhor com os gregos: não se dribla um destino que já lhe foi escrito.
Não obstante, ela insistiu. Determinada a cavar seu espaço no mundo sozinha, estudou febrilmente, movida por um misto de ressentimento e esperança. E, pela primeira vez em anos, não pressentiu, apenas soube: dali iria sair. A primeira da família na universidade, até hoje chora ao lembrar do olhar úmido do pai quando soube, do abraço apertado da mãe, de como, por uma noite, pôde ser a “Geni que salvou a cidade”. Não esperou amanhecer, para que não houvesse tempo de a transformarem em a “Geni boa de cuspir”: mandou-se dali para não mais voltar.
Na universidade, nunca mais teve presságios. Encontrou as palavras exatas para descrever a medida de suas limitações e grandezas, a válvula perfeita para canalizar sua revolta e as companheiras certas para liberar toda sua potencialidade. Assim, pela segunda vez desde a infância, sentiu-se menos cansada, a alma menos retorcida.
Como era das mais inteligentes, entendeu muito rápido que sua geração fora enganada. Que não havia como o país se reconciliar, porque não havia país nem Nação. Ela entendeu muito antes, porque viu claramente o delírio de misoginia que tomava conta do debate público. Disseram-lhe que estava exagerando, sendo irracional, que aquilo era apenas um presságio. Que ela estava agindo como a presidenta, que também era bruxa, irracional, descontrolada e tinha apenas presságios.
        Infelizmente, ela estava certa. Não havia potência e nem empregos para diplomadas, muito menos para ela: negra e periférica. Ela, novamente, seguiu sem olhar para o lado. Agora sabia quem era, o quanto podia e não iria desistir da luta. E bateu em tantas portas e teve tanta humildade e energia e mostrou tanta vontade (ninguém jamais imaginaria o quão fundo era seu cansaço) que conseguiu uma oportunidade. Mas o diretor da escola passou a assediá-la logo no primeiro mês e ela percebeu que não tardaria a perder aquele emprego. Ainda assim, jamais cedeu: não seria capaz de carregar outra letra escarlate, a primeira ainda queimava em sua barriga certas noites. Sem emprego, logo faltou dinheiro para o aluguel.
           E ela, que já passara por tanto e jamais quebrara, começou a achar que jamais se recuperaria de seu cansaço nessa vida. Talvez fosse melhor morrer como bruxa e encarar a danação eterna que sempre fora seu destino. Estava tão à beira do abismo que a vertigem era irresistível demais, era silêncio, acolhimento e liberdade. Passou o batom vermelho forte e se maquiou com gravidade. Preparou as pílulas e o copo de água, posicionando-os cuidadosamente na cabeceira. Deitou-se na cama, corpo nu estirado em oferenda, e inspirou fundo para tomar coragem. Mas então o telefone tocou e ela soube que devia atender. Era sua mãe, estava preocupada porque ela não ligava há dias, queria saber como ela estava, como era o emprego, se estava se alimentando direito.

         Ela respondeu à mãe impassivelmente, como se tudo estivesse normal. Por dentro, contudo, algo se consertou. Com a força de vontade dos que já contemplaram o abismo bem de perto, ela se vestiu, limpou a maquiagem e o batom: novamente, era livre. Seguiria com o plano: seria quem ela escolhesse ser. Não precisava pressentir para saber que ganharia essa. Porque não perdera até agora e o destino ela já conhecia muito bem: era masculino, de ego inflado, morrendo de medo de mulher. Rumou à rodoviária e comprou uma passagem para sua cidade-natal. Iria visitar a mãe para lhe dar um abraço bem forte e repousar a alma.

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Sobre o que perdemos


Escrevo tão somente para listar o que perdemos. Obviamente, essa não será sua hora favorita, mas essa sempre foi minha hora inevitável. Pense nessa carta como aqueles intervalos de almoço, nos quais eu aproveitava os poucos instantes livres do dia para despejar sobre você minha fileira de desesperos, e você apenas aquiescia mudo. Nessas horas, eu entendia que não deveria nem ter começado. Porque você era diferente.  Quero dizer, você sabia sempre da realidade desfigurada à sua volta enquanto vestia a fantasia do dever, mas era capaz de se transportar para outro mundo quando podia tirá-la. Naquele mundo, existia a paz do almoço compartilhado vagarosamente, a vida como um desfile de amenidades agradáveis, um mundo no qual as pessoas eram incrivelmente gentis.
                Eu, veja bem, nunca pus o uniforme do dever. Por conseguinte, sou incapaz de tirá-lo, vivo mesmo em estado de perplexidade e não consigo jamais apertar aquele botão que todos usam, aquele que emudece todos os ruídos estéreis e desesperadores da realidade à volta. Só me restar escrever sobre o que perdemos.
                E perdemos tanto, quem diria! Perdemos enquanto sabíamos que perdíamos. Perdemos enquanto, ai de nós, estávamos dando conta de tudo que se passava. Ainda assim, subestimamos nossas perdas por larga margem. Até meu vocabulário, repare, antes tão desenvolto para discorrer sobre os aspectos estéticos da existência, tornou-se mais técnico, largas margens e grandes retornos, realidades simples e silenciosamente agoniantes. Mas perdemos passivamente, mantendo a rotina, acordando cedo e olhando calmamente o mesmo belíssimo nascer do sol sobre o mesmo famoso solo pátrio, tomando o mesmo cafezinho e chorando por dentro enquanto colecionávamos belos e coloridos eletrodomésticos.
                Ah, como perdemos imensos montantes... Perdemos complexidade, “market share”, flexibilidade, olhar vago e lento sobre as belezas contraditórios da existência. Perdemos pedaços da alma, certezas, exposição de mercado, laços antigos, narrativas sobre nós mesmos, valor acionário... Perdemos poder de sermos síntese entre o mundo tal qual é e tal qual dizem que ele deve ser.  Perdemos a prepotência ingênua, o amadorismo romântico, o título da dívida.
                Ainda posso salvar seu almoço, contudo, se disser que também me dei conta de que ganhamos algo. Foi hoje, enquanto fitava o branco reluzente dos azulejos do meu banheiro ao escovar os dentes pela manhã. Checava no espelho se não deixei nenhum pedaço de comida próximo à gengiva e matutava a respeito de mil preocupações tolas.  A iluminação já veio como “insight” mesmo, a lembrar que minha língua já fora mais rica, como também minha existência já portara significados mais complexos. Tudo desmoronou, de uma vez, e já não me ilumino mais. Só tenho “insights”. Veio de súbito, na forma de lembrança.
Foi há muito tempo, sentado em frente a um lago e pescando com meu pai, após tomar minha primeira cerveja. A brisa leve beliscava a superfície entediada da água e eu, pela primeira vez, não me aborrecia com a ideia de que a vida poderia não ser uma sucessão de fatos. Sucessão de fatos são, no fim das contas, muito simples. A lentidão, por outro lado, pode ser complexidade.
 A natureza à volta era menos colorida e segura que meus muito eletrodomésticos, mas naquele dia entendi que ela era a única salvação para os que não vestiam (e, portanto, não tiravam) nunca o uniforme do dever. Era tão lenta a natureza e tão acolhedora a leve embriaguez. Poucos ruídos dispersos, a vida bem podia também ser um pouco aquilo, porque aquilo deixava espaço para que eu também fosse narrador.  Adorei a iluminação: a vida como incerta narrativa a ser rabiscada. Mas então olhei para meu pai e me ocorreu que ele talvez já tenha se sentido da mesma forma enquanto pescava com meu avô. O que será que mudara desde então? Sentia-se ele autor da própria narrativa? E se ele perdera também essa autoria? Como ele fora capaz de resistir a tal processo?
Essa ideia difusa me assustou profundamente e tratei de afastá-la. Veja, caro amigo, quão engraçada é a memória. Jamais apostaria que um momento tão lírico viria novamente à minha mente enquanto procurava pedaços de comida entre os dentes. E que o lirismo seria reduzido à objetividade de um “insight” e que aquele quadro, aberto e lento, voltaria emoldurado pelo fatalismo funcional, sequencial e veloz da rotina.
Estou sendo prolixo, eu sei. Perdoe-me. Vamos às conclusões. Espero sinceramente que ainda não tenha acabado a sobremesa.
Desde ontem, a realidade já desmoronou completamente. Na verdade, há meses ela vem desmoronando completamente dia após dia, suas camadas carregadas pelo vento leve que entra em nossas cozinhas enquanto assistimos ao nascer do sol e tomamos café. E nós viemos vivendo todos esses dias de desconstrução completa sem sequer nos darmos conta de que ela ocorria.
Veja, meu caro amigo, ficamos tão resistentes que vivemos a prova sem saber que estávamos sendo testados. Mudamos tanto e de tal forma que aprendemos a resistir sem fazer causo disso. Perdemos tudo desde ontem, é fato, mas ganhamos também a mais imensurável capacidade de não tomar nota do que se perde.
Pagamos um preço, não nego.  Sequer sei o que nos tornamos, tampouco acho que gosto. Entretanto, que não duvidem de nossa resiliência, pois já somos sobreviventes tão calejados que sequer percebemos o que éramos: isso, sobreviventes. Achei tal ideia tola o máximo, até porque notei que a palavra sobrevivente é formada após a adição de um prefixo ao radical “vivente”. As pessoas antes precisam ter sido “viventes” para ganhar a casca grossa conferida pelo prefixo “sobre”. A casca as cobre e é capaz de tapar a entrada de luz, mas também garante proteção quando os mais fortes abalos sísmicos ocorrem.
Era esse, enfim, o meu “insight”, quis dizer que ganhamos algo sendo perdedores. Agora tudo parece meio tonto, carregado de pretensões demais e qualidade técnica de menos. Não sei nem mesmo se ficou claro, agora acho até que jamais foi “insight”, apenas escuridão. Ou duas noites mal dormidas.
De toda forma, tenho medo de que esqueçamos que já fomos viventes contemplando o lago antes disso tudo. E que respirávamos a vida com tanta alegria que queríamos mesmo congelar aquela sensação para sempre. É, meu caro amigo, talvez nada nos dê mais consciência do tempo que escorre pelas mãos do que essa alegria tão intensa que até inebria.
Perdoe-me se estraguei seu almoço com minhas observações soturnas. Você sabe como adoro perturbar sua rotina.  Ressalte-se, contudo, que admiro demais a disciplina com a qual você serve à causa da estabilidade. Você é o tipo de pessoa que os mundos em desagregação precisam. Eu, por outro lado, sou um produto que precisa ser descontinuado. Espero que tenha gostado da torta de morango da cantina da Dona Maria que você sempre come de sobremesa. Venha me visitar algum dia, se sobrar espaço em sua agenda. Sinto falta do truco às quintas. Mande notícias.


Sinceramente,

sábado, 2 de julho de 2016

Cotidiano em Lacunas

Levantou-se com a filha lhe sussurrando algo delicadamente, lembrando-lhe que passara demais da hora de ela levantar-se. Ela há muito esquecia que tinha de acordar, aquela mistura interminável de dias e noites, o quarto iluminado sempre e apenas pelo abajur de cabeceira. Mas a filha quis lhe vestir, lembrou-lhe que ela precisava tirar aquele pijama, “ainda havia vida lá fora, existe um mundão pulsando mãe, vamos lá, a senhora tem que se esforçar...”
       E ela, a senhora, entendia algo, ainda que pela metade: captava parte do esforço da filha, comovia-se até, mas algo a puxava de volta para seu mundo de meios gestos. Assim lhe vinha a realidade: pela metade,  poucas palavras, nem dia nem noite, uma existência de faces vagamente familiares.
           A filha, contudo, insistia. Ela então cedia ao ritual de todos os dias: reunia todo esforço que podia para se levantar, deixavam que lhe vestissem, que lhe contassem histórias e sussurrassem frases motivacionais. Via a dor nos olhos alheios, mas isso só reforçava seu olhar inexpressivo. Não queria olhares demais, não era mais capaz de se conectar com tamanha intensidade. A filha a pegava pelo braço e a guiava lentamente até a porta, pacientemente lhe relembrava como era andar. E ela ia, conduzida por quem já tantas vezes tivera de conduzir, num meio papel invertido que  a vida não lhe preparou para encarnar.
            E por raiva da vida, ela ralhava com a filha. Ela ralhava sabendo que não devia, mas sabendo que jamais pediria desculpas. Algo difuso dentro dela sempre torcia para que a filha fosse capaz de perdoar e relevar. Raiva despejada no quarto vazio à meia-luz, ela voltava a andar lentamente. Saíam de casa, rumo à padaria, ela veria em breve como estava lindo o dia lá fora, lembrava-lhe a filha. Ao ouvir isso, ela quase se irritava de novo, mas respirava fundo e seguia em frente. A filha não entendia que, para ela, não havia mais dia. Nem tampouco noite, o mundo era um borrão incognoscível, algumas vezes mais nítido pela presença de um quarteirão que lhe invocava certa memória longínqua, sons que conhecia desde pequena, um rasgo de luz na realidade opaca da memória.
              Ela parava a cada dez metros e pedia para voltar, mas a filha insistia, agora mais impaciente. Às vezes, demorava-se para fitar um banco na praça do lado da casa, ou para comentar sobre algum estranho que há muito estava morto. Às vezes, ela chorava muito. Como a esmagava aquela solidão, a consciência de ser a última representante de seu mundo. Ela e as ruínas que só ela reconhecia como tais, era essa a consciência que tomava conta dela a cada instante que estava desperta. Essa consciência hiperativa era a verdadeira razão pela qual ela perdera todas as demais consciências, vagando no limbo alaranjado anil de um mundo sem transições. O tempo não corre, arrasta-se, como se estivesse descansando depois de perder o fôlego correndo em todos os dias antes daqueles dias. A partir daqueles dias, que nem dias eram (porque dias não existiam mais), o tempo só se prolongava lento e estático, a vida como a imagem embaçada formada pelo ar próximo ao asfalto quando tudo parece quente e imóvel demais.
          Entram na padaria com delicadeza e todos a olham comovidamente. Ouve a filha pedindo o pão mais crocante e moreninho, porque sabe que a mãe sempre gostou assim. Ela, a mãe, prefere observar outra mãe, que está puxando uma criança pelo braço. O menino grita, mergulha no chão, chacoalha ritmadamente as pernas e berra. Aponta agonicamente para a vitrine iluminada cheia de doces. A mãe tenta arrastá-lo para forçar que levante-se, mas ele permanece estático no chão. Teimoso, parece ficar até mais pesado. A mãe o larga e dirige-se ao carro, ameaça deixá-lo. Ele não levanta. Ela respira fundo, dá meia volta, agacha-se e começa a dizer algo no ouvido do menino: de súbito, ele assume uma expressão suave e corre para sentar no banco de trás do automóvel. A cena lhe lembra algo, um sentimento que remete ao fenômeno do dia tocando a noite e fazendo ambos deixarem de ser dia ou noite para serem somente essa unidade arrastada que ela vivencia a cada segundo. Essa sensação não se articula inteira, contudo, pois a sensação de espremer-se entre lacunas, como a saltar sobre as pedras de um riacho, ganha o controle sobre ela novamente. E isso volta a irritá-la profundamente, mas, por sorte, a filha chega com o pão nesse exato instante e ela encontra alívio em sua face de afeto.
             Outra lacuna e ela está novamente no quarto iluminado pelo abajur à meia-luz. Um prato com farelos de pão em sua cabeceira. Ouve a voz da  filha, sussurrando ao telefone, vindo de algum cômodo próximo. Ela se estende na cama e fecha os olhos. A escuridão indefinida laranja-anil toma conta por alguns minutos antes dela adormecer. E então ela sonha...
Nos sonhos, há pedaços de madeira ligando as pedras do riacho. O dia separa-se novamente da noite. Ela é a mãe puxando o braço do menino para que ele entre no carro. Ela também é a mãe abaixando e sussurrando palavras conciliadoras no ouvido dele. Depois ela está na praia assistindo ao sol mergulhar sobre o horizonte tal qual o menino birrento mergulhando no chão da padaria, como se cedendo espaço para a escuridão estrelada das noites limpas. A lua lhe pega pelo braço e lhe conduz  à imensidão azul, onde todos são solitários e vizinhos e, por isso, todos veem beleza na solidão. E então ela sente uma paz de completude que achava não existir. Ela decide não acordar nunca mais.

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Pôr do sol sem tomar fôlego

Life has come a long way since yesterday I say
And it’s not the same old thing over again I say
(Ziggy Marley – True to Myself)

Para você

                Foi capturado por uma imagem: o pôr do sol sobre o mar, que o mundo roesse suas velhas engrenagens lá fora e ao seu redor, que sua pureza já tivesse se esvaído e pouca ilusão restasse sobre si mesmo e que o pôr do sol e a praia fossem solidão e melancolia tão somente, ele jamais dexaria de gostar demais do laranja que envelhecia e sumia longe,  corria embora do mar e da vista, contando mais da passagem do tempo do que todos aqueles anos abarrotados de cansaço sobre seu ombro, pois de cansaço ele entendia, ele  que vivia sempre cansado, não sabia quando comecou, nem por que não passava, sequer gostava do próprio cansaço, até porque entendia seus privilégios e era grato por eles, mas no fim sempre venciam o tempo e a noite, aquela certa falta de vida pelo excesso dela mesma, a sensação de ter deixado de pensar sobre várias coisas que ele devia ter pensado no dia, a certeza de estar se distanciando de si mesmo e da própria humanidade: ah, isso seria curado pelo pôr do sol sobre o mar, a vida se alongando mais do que a realidade permitia, a preguiça lírica renovando certezas perdidas, mas nada disso sozinho, não sozinho, nem existiria tal ideia e tal fenômeno se fosse talhado apenas para um, isso só com você, porque você é também o pôr do sol sobre o mar, embora seja vivo e se mova para longe da costa, você também sabe bem dos tempos que se alongam, de toda energia que se perde quando se está longe da delicadeza e de toda beleza que não se vê quando vivemos de costas encostadas um com o outro, sem jamais nos olharmos nos olhos, sem jamais fitarmos o grande halo laranja sobre o mar, ignorando a vida que só é intensa e forte quando assistimos a esse espetáculo juntos, quando contemplamos a intensidade de estar em nós, já que então podemos nos perder um pouco na ilusão necessária de que recuperamos todo tempo perdido e não haverá mais aquela imensa fadiga dos poucos muitos anos já gastos sem chegar a lugar nenhum, e  todo tecido de vida apodrecido por divertidas risadas cínicas é renovado e, por alguns minutos, podemos nos fingir certos de que a vida é tão larga e generosa como a imensidão azul salpicada de laranja febril, o vento leve acariciando nossa face, o mar infinito no qual nós cabemos, e, por óbvia extensão, o mundo inteiro também.

sexta-feira, 11 de março de 2016

Meu pai([ís])


“E a gente fez nosso futuro/ Quase quebrando o nosso mundo...”

(Nosso Mundo – Barão Vermelho)

          É irônico, mas foi muito longe de meu país que encontrei pela primeira vez meu bicho papão.   O bicho papão era um homem, mas quase não vi seu rosto: seu carro, algum modelo de Ford bem antigo (da época em que os designers não se importavam em abusar de ângulos retos), estava completamente coberto de adesivos, cartazes e dizeres. Não esqueço o primeiro em que bati o olho: era uma ofensa racial inominável, escrita em letras vermelhas sobre um fundo branco. Meu coração disparou de súbito. Por um breve instante, meus olhos cruzaram com o do condutor do veículo: um sujeito de meia idade, poucos cabelos, camisa listrada e olhos inexpressivos e duros. Eu quis muito apertar o passo, quis mudar de calçada, desaparecer, voltar para qualquer quarto protegido inexistente, guardado em alguma lembrança difusa, mais estado de espírito que imagem.
É verdade que muitas vezes já havia imaginado como seria encontrar pessoalmente o que até então era para mim um personagem. Eu sempre me questionara se havia alguma maneira pela qual todo aquele ressentimento imenso poderia se humanizar caso ganhasse rosto.  Mas, para meu desespero, o homem sem face era carro de ódio, o carro era todo palavra e imagens e as palavras e imagens eram só violência pura e concentrada. E então eu senti-me mais fraco do que nunca, mais impotente e descartável do que jamais fora: porque nem toda razão letrada, racionalidade elegante ou ponderação razoável fariam a imagem daquele carro e a lembrança daquele olhar saírem de minha mente.  A razão burguesa é piada de mau gosto para a força irracional. Foi então que lembrei do meu país e quis chorar.
É engraçado que aquela também tenha sido a manhã em que eu tenha lido a seguinte manchete em um blog de um famoso comentarista político brasileiro: “A crise ganhou um novo componente. E ele veste farda e pilota tanques.” Engraçado ou providencial,  já que da realidade vemos o que buscamos e não existe nada mais plástico do que a tal verdade. A minha verdade naquela manhã era a verdade dos desapontados, aqueles que acreditavam até o último minuto que seríamos melhores.
 Não estava sozinho nessa. Nem de longe. De qualquer forma, talvez por certa mesquinharia que andei diagnosticando em mim recentemente, senti-me mais sozinho do que nunca, como se sentem todos os ingênuos quando começam a enxergar cruamente os mecanismos operando por trás de suas ilusões. Havia tempos que pescava dizeres se formando em pedaços amorfos de minha mente, uma necessidade imensa de falar mais e ainda além dos meus costumeiros excessos, buscando uma primeira pessoa que fosse mais íntima da que geralmente sou capaz de encontrar. Contudo, a realidade rachando trouxe mais urgência ao costumeiro esforço de costurar os poucos pedaços de verdade aos quais ainda ouso me apegar.
E foi então que lembrei de um texto que havia escrito ainda nos idos de 2014, quando o espírito daquele carro de ódio começou a se materializar em seus primeiros objetos: teclas descoordenadas, cartolinas mal pintadas, bonecos carnavalescos, bolas de futebol furadas, muros repintados, mesas gargalhantes, letras maiúsculas, letras minúsculas cheias de si... O ódio cabia em tantos espaços e  como tinha propriedades subcutâneas! Quis relê-lo, ele me trouxe algum alento, ainda naquela época já era mais jovem que hoje.  Se não o publiquei antes é porque o julgava íntimo demais, alma revirada do avesso sem nenhum cuidado estilístico. Seria um pecado em tempos comuns, mas não sinto tempos comuns. Então o reproduzo abaixo, como quem também o reescreve.
Do dia em que Lula foi eleito, em 2002, lembro-me de duas coisas: de que caía uma chuva fina em minha cidade e também de que foi a primeira e última vez que vi meu pai chorar. Quando decidi que precisava (mais do que queria) escrever sobre meu pai, decidi que queria começar o texto com essa lembrança. Porque meu pai sempre veio a mim aos poucos e, talvez por isso, seja muito mais fácil para mim falar sobre ele do que para ele. A verdade é que ele  sempre foi um homem político, no sentido completo do termo, daqueles que acreditam que quaisquer conquistas, responsabilidades ou culpas sempre são, em alguma instância, coletivas. Meu pai também é, sem dúvida alguma, o melhor homem que conheço.
          Memórias de infância, lembro-me muito do silêncio de meu pai. Falava pouco, quase nada sobre si e costumava perguntar muito sobre os outros. Infelizmente, não herdei essas características. Trabalhava demais, nunca chegava antes das dez da noite em casa. Saía antes das seis e meia da manhã. Parecia sempre cansado.
 Meu pai entendia homens de lealdades simples, desde que fossem francos e tivessem posição. Em tudo proletário, meu pai: na alma e na postura. Em tudo um homem da Guerra Fria também: palavras objetivas, expressão clara, sem dobras. Trabalhava doze horas por dia e sempre chegava em casa de mansinho. Isso me lembra o quanto admirava o pai. Calado, gentil, até perdoava seu filho em cima do muro, comedido, condescendente e contemporizador. “Bunda mole”, vá lá, “mas de bom coração”.
Dava seu melhor quando estava presente. Tentava ver filmes conosco toda quinta-feira e, invariavelmente, caía no sono, derrotado, no sofá. Costumava acordar sobressaltado à noite, ar faltando, respiração ofegante: dizia-nos que era apnéia do sono. Eu tinha muito medo dela, porque achava que um dia aqueles pesadelos poderiam levar meu pai.
            Mais tarde, soube que meu pai tinha princípios políticos (e muitos gostavam de falar isso em voz baixa, mão do lado da boca, como se fosse um pecado que poderia ser perdoado devido a todas as outras virtudes dele). Soube que estudara em Brasília também, ainda nos terríveis anos setenta de chumbo grosso.
Certa feita, contou-nos sobre como invadiam o alojamento estudantil à noite, armados e fardados, e, no dia seguinte, alguns estudantes não estavam lá. Também mencionou histórias sobre tanques rodeando corpos estáticos. Formei uma imagem: portas da universidade se fechando, luzes se apagando e todos deitados no chão em fila, enquanto tanques subiam o pátio e circundavam os corpos vivos vagarosamente. Eu sempre indaguei o porquê daquilo e ele nunca respondeu. Eu não podia compreender ainda as ações inúteis tomadas apenas pelo prazer de intimidar. Dessa época, veio sua apnéia do sono que durou décadas.
          Os tanques e as filas ordenadas, a sociedade em seu lugar: essa idéia comecou a me machucar um pouco também. E doía sempre e tantas vezes depois, quando ouvia pessoas de ar triunfante, sedentas em sentirem-se corajosas por exibir sua crueldade, dizerem na frente de meu pai que a ditadura havia sido absolutamente pacífica. Ainda assim, nunca ouvi meu pai responder nada a essas pessoas.
         Na adolescência, também odiei meu pai, porque o achava muito grande: como poderia um dia sequer alcançá-lo? Meu pai, que tentava olhar a humanidade até das pessoas que o condenavam. Meu pai, que nunca me ensinou a odiar. Se meu pai me veio aos poucos, é também porque me era difícil olhá-lo diretamente nos olhos. Tinha o defeito da sinceridade. Mais difícil quando comecei a entender o motivo pelo qual algumas pessoas o ofendiam. Também compreendi por que ele nunca mais choraria de novo. Mas nunca aprendi a aceitar.
Eu, mas não meu pai, que apenas dizia: “Elas (as pessoas, todas elas e cada uma) estão em suas lutas...”
      Meu pai sempre seguia em frente. É isso o que mais guardo dele. Ele caía e se levantava como se nunca tivesse caído. Ele também tinha sua lealdade simples: precisava acreditar na solidariedade. Como ideal e profissão de fé. Precisava disso para poder continuar buscando livremente um sentido para a bagunça da existência. Uma forma de resistir à força impassível e cruel que contorna filas de jovens deitados apenas pelo prazer que isso traz.
        Meu pai tem muitos defeitos, eu bem sei. Quem não os tem?  Se escrevo sobre ele, é, na verdade, para homenagear todos os homens e mulheres como ele. Aqueles homens e mulheres que, independentemente do espectro político a que pertencem, independentemente das ideias que defendem, acreditam que nunca devem roubar a humanidade alheia. Nunca devem quebrar as pessoas, pisando com désdem na luta de uma vida toda. Que, em todas as suas batalhas e resistências, silenciosas ou no megafone junto à multidão, nunca gargalharam de um homem no chão, nunca apostaram no nosso pior. Que, assim como meu pai, ouvem absurdos calados e se desfazem do ressentimento assim como se desfazem de roupas pesadas após um dia extenuante de trabalho. Que souberam amadurecer, entender a distância entre o objetivo almejado e o mundo possível, sem nunca se desviarem dos propósitos nobres que os conduzem. Vocês estão em todos os lugares dessa sociedade, em todos os Poderes, partidos e grupos. Mas estão vivendo uma fase difícil, eu sei.
      Também, por isso, escrevo. Percebi que homens e mulheres que representam o oposto do que vocês representam estão prestes a tomar conta do país. Novamente, não me refiro a um partido, grupo ou Poder específico. Eles estão em todos os lugares, interditando o debate nacional, apostando nas nossas mazelas, ganhando corações e mentes. Muitos, nessa hora, começam, novamente, a culpar meu pai, a culpar homens e mulheres como ele. “Vocês poderiam ter feito mais!”, eles bradam. “Vocês são ingênuos!, eles insistem. “Vocês são desonestos!” , eles babam. “Vocês abandonaram a luta!”, eles continuam. Eu permito-me, nesse ato de condescendência, discordar de todos eles. A minha discordância é  a razão desse texto existir. A minha discordância  e meu amor pelo meu pai.
      Também eu tive pesadelos, noites mal dormidas e coração sobressaltado quando, ainda em 2013, percebi que a irracionalidade e o ódio iam tomar conta do país por um tempo. Agora não tenho mais. Eu entendi que, ainda que leve alguns séculos (eu provavelmente não estarei vivo para ver), o tempo desses homens e mulheres cheios de certezas e rancor está acabando. O fato é que eles têm o dom de conservar cadávares ainda por muito tempo além do momento de enterrá-los. Eu ouvi coisas demais calado, bem que tentei me tornar ressentido e, com certeza, comecei a envelhecer mais rápido do que gostaria. Por isso, digo, num extremo (perdoem-me por isso) ato de egolatria e narcisismo, que tenho a convicção plena de que o tempo de homens e mulheres como meu pai está apenas começando. É que as auroras costumam ser confusas mesmo e, às vezes, as madrugadas tendem a parecer mais longas do que deveriam.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Estrangeiro

         Para L., M., R. e S.

      “Você entenderá que a melancolia também tem uma beleza cortante”, foram as palavras que o amigo escapou em seu ouvido, no abraço de despedida. Na época, ele achou que entendia profundamente da beleza que existia na solidão contemplativa, de forma que não avaliou com a cautela devida aquele aforismo barato. Foi só ao olhar a neve caindo através do vidro da janela de seu quarto, contudo, que entendeu o vicío dolorido e reconfortante que só a melancolia saudosa faz adquirir. Ele vinha se dedicando a esse exercício há tempos, é fato, quase como se testasse o quão fundo sua alma podia mergulhar naquele silêncio branco e higiênico. Assim também compreendeu melhor como um mundo limpo poderia ser uma promessa tentadora e perigosa, encarnação maior de nossas pulsões destrutivas. A sujeira dos trópicos sempre lhe pareceria mais vida, o ímpeto que lhe tirava da cama todas as manhãs. Mas esses paradoxos que só se desnudam no silêncio tinham lhe cansado e envelhecido demais.
           Não era a neve, entretanto, o que mais andava lhe cobrando noites de sono ultimamente. Era o medo de estar vivendo no país errado. Não, não se referia àquele país que seus pés tocavam nesse momento, aquele que ele sempre soubera não ser o seu. Tinha mais a ver com o país imaginário, a pátria construída que carregava dentro de si, seu ethos, marcado na maneira exagerada com que gargalhava em público, perturbando e denunciando a harmonia da paisagem branca e silenciosa. Doía-lhe fundo a ideia de que aquele país não mais existia.
Era irônico que essa fosse a boa-nova trazida por todos aqueles campos alvos de distância.
A neve lhe fizera voltar a ouvir as canções da infância, a ler os livros da cultura legítima e a celebrar uma identidade que nunca soubera sua. Mas de repente ele também descobriu-se lendo livros que ninguém mais lê, ouvindo músicas sobre as quais poucos ouviram falar e lutando sozinho para alimentar uma narrativa nacional que, cada vez mais, era negada pela realidade. E por temer carregar consigo uma pátria imaginada, construída sobre mitos em desuso, desconfiava que tivesse sido condenado a ser estrangeiro para sempre.
           Ele procurou soluções, é claro. Queria se acostumar ao estranhamento. Saía para estudar em diferentes bibliotecas a cada dia, bem como mudava os trajetos que fazia em suas caminahdas matinais. Observava  introspectivo tudo à volta, o apuro dos detallhes saltando aos olhos, como um personagem que invadiu um filme que não lhe pertence durante uma cena particularmente emocional. Era o isolamento pleno, a incomunicabilidade de que só desfrutam os mais livres. Ainda assim, quantas vezes ele chorava e apenas queria ficar ainda mais sozinho, em total privacidade com sua pátria imaginada, o país que não existe mais e talvez nunca mais existirá, o lugar para o qual não pode mais voltar.  
Pensou em certos amigos da vida toda e amou como nunca sua família. Também internalizou a sabedoria profunda de outro aforismo barato, um alerta sobre a vida passar a galope, no mais infinitesimal piscar de olhos. Sim, a neve lhe ensinou sobre a passagem do tempo e sobre a cruel beleza de sua marcha unidirecional. É claro que também lembrou da maior paixão do fim da adolescência, aquela que talvez ainda sentisse o mesmo descolamento que ele, buscando um país sobre o qual desabar. Também a via pela janela, caras anônimas, pontilhadas na neve branca, tantas vezes idênticas umas as outras. Entretanto, nenhuma ria da mesma forma iconoclasta, tampouco cultivava hábito de fazer digressões sobre o vazio, gastar palavras pelo prazer de sua musicalidade. É que diferente sempre parece um pouco igual, familiar e cruelmente genérico e  impessoal. Estrangeiro em próprio corpo, lamentou também pela fala perdida e pela lacunas que invadiram a amada língua nativa, antes tão plena em expressividade. Talvez movido por vãos impulsos purificadores, permitiu-se, muito mais de uma vez,  a manchar a tela em branco com uma multidão clichês, procurando restabelecer certo sentido completo.
Vezes sem conta revoltava-se por ter subestimado tanto a rotina: as memórias que mais doíam eram aquelas de situações que ele vivenciara com a certeza de estarem condenadas à vala comum das banalidades. Outra vida, outro país, meu país, silêncio ao redor.
O única possível alívio, ainda que fosse aposta de risco, era encontrar outros ainda presos nesse mundo que desabou tão rápido, dispostos a encarar a luta vã em defesa de uma narrativa ultrapassada. Ele adorava essa ideia, adorava a luta pelas narrativas que não valem a pena senão pela beleza melancólica que sua quase-extinção encerra.
Assim, ele também saiu com pessoas, os bons amigos das madrugadas geladas, todos rindo coletivamente do deslocamento para não lembrarem do quão passageiro seria esse contato. Inventou outros simulacros de pátria, descobriu novas fontes de calor, divertiu-se  um pouco com o desespero que só a liberdade plena traz. Pensou sobre a origem, regrediu ao início, refez fins possíveis, procurou novas narrativas de país e permitiu-se acreditar no delírio de que voltaria para a mesma casa de que saíra.
De qualquer forma, ele sabia que aquela neve nunca desaparecia completamente de sua quente terra natal e, ainda que essa certeza o fizesse amar ainda mais o aconchego dos trópicos, também plantou uma dúvida perpétua quanto à veracidade de seu calor intenso e de sua luminosidade generosa.  E essa era a marca visível de sua condenação, evidência última de que  ele seria sempre o homem só na estrada esquecida, nos confins do Judas, insistindo em penetrar mais fundo naquelas terras largadas por Deus, naquele país onde ele vagava e sumia, equilibrando-se pé ante pé num muro imaginário, dançando na corda bamba dos anônimos, sempre a ponto de ceder à tentação do esquecimento.


quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Memória

‘’Não sei, mas sinto que é como sonhar 
Que o esforço pra lembrar 
É vontade de esquecer 
E isso por que? (diz mais)’’

(O Vento – Los Hermanos)

          Ele ouviu dizer que ela tinha começado a se esquecer e isso o machucou fundo. Foi ela quem primeiro lhe ensinou que memória era sentido e sentido era o tecido da alma. Mas começou com outro tecido, o dos filtros de café de pano. Desde muito pequeno, ele sentava em sua cadeirinha de madeira colorida na mesa da cozinha e a observava coando café. Ela sempre narrava a mesma história, porque ela mesma já fora a menina sentada na cadeira de madeira, vendo a mãe dela coar café. Só que o filtro era diferente, de pano,  e, por isso, ela dizia, o café da mãe dela era melhor.
Mulher de hábitos, toda vez ela interrompia a história nessa parte e tirava da caixa o filtro de papel. Em seguida, entregava para que o menino deslizasse os pequenos dedos em sua borda e sentisse a textura. Daí, pegava de volta para adicionar o pó, não sem antes fazer uma careta e murmurar baixinho: “descartável”.
        Ela odiava as coisas descartáveis, bem como os mundos em desagregação. Ela gostava da estabilidade da gramática normativa e das palavras sofisticadas, que pescava em seus livros de páginas amarelas. Às vezes, lia alguns trechos em voz alta, para alegria do menino.
Ele a amava profundamente desde muito pequeno, porque ela, toda estabilidade e filtros de pano, conservadorismo e manias, deu-lhe a proteção dos mundos estáveis.
          O menino cresceu, mas seria injusto dizer que isso a amargurou. Para ela, ele foi a única grande exceção: a adolescência lhe deu diferentes brincos e piercings, penteados que não viravam o mês e uma tatuagem no antebraço. A cada uma desses mudanças, ela reagia com a mesma careta que fazia para os filtros descartáveis. Contudo, dava-se o luxo de acrescentar: “Em você, até que não fica tão ruim.” E ele ria por dentro, ele mesmo todo iconoclastia e ira, ressentido contra o conservadorismo raivoso do mundo. Menos contra o dela. Porque o dela tinha face, histórias ao pé da cama, as primeiras palavras bonitas e as músicas antigas da fazenda que ela cantava para ele dormir. Além do cheiro de café fresco, é claro. Na verdade, ele sofria com ela o tempo que passava e via brotar, de toda sua instabilidade, um desejo profundo de que ele nunca tivesse saído daquela cadeira de madeira colorida.
Mais tarde, ela adquiriu o costume de sentar em bancos de praças e observar um mundo em que ela não mais se reconhecia. As páginas amarelas e cheias de traças tinham virado aqueles quadrados futuristas com telas luminosas e design de gosto duvidoso. Os livros, pelo menos, empilhavam-se aos montes nos guarda-roupas cheios de mofo. Eram espaço, concretude e permanência.
Os mais novos ralhavam com o habito dela de acumular, mas ninguém entendia que era só assim que ela se sentia protegida. Como não viam que aqueles eram os muros de sua fortaleza? O que as pessoas esperavam? Que fosse possível viver em um mundo em que até as palavras fossem descartáveis e consumíveis? Era essa a ideia que a oprimia e que ela não suportaria jamais. E era por causa dessa ideia que, sentada no mesmo banco, chorava todas as manhãs, meio invisível aos traunseuntes apressados. Na hora do almoço, o  menino escavapa do trabalho e ia buscá-la. Pegava-a pela mão e a conduzia pacientemente até a porta de casa, ele também precisando voltar a um passado que nunca habitou.
         Infelizmente, o menino um dia foi morar longe. Nessa época, já tendo perdido alguns fios de cabelo, também começou a querer ter hábitos. Dessa feita, ligava para ela toda vez que estava em uma rodoviária. Quase sempre, falavam sobre as mesmas coisas, embora essa fosse a única situação em que ele,  sempre tão afoito, ouvia mais do que falava. E ela repetia os mesmos temas e narrativas, às vezes mais de uma vez na mesma ligação. Eram os instantes em que o mundo parecia subitamente tão ruidoso e novo como melancólico para ele. Contudo, ele só chorava no momento antes de desligar, quando ela voltava com o mesmo velho verso de um poema muito antigo: “Não se esqueça, meu querido, a vida é luta renhida. Te amo.” E o nó na garganta era tão grande que ele respirava fundo para responder que a amava também.
           Ele sentiu que precisava voltar quando ela começou a não reconhecer a própria casa. Porque era aquele o único mundo que restava para ela. Se o lugar se fosse, ela se ia também, uma vez que sua alma aceitaria tudo, menos ser feita de material descartável. De certa forma, ela sempre soubera disso um pouco antes de esquecer.
Por isso, ele voltou de fato. Ele quase não suportava a injustiça da situação. Isso acontecendo logo com ela, que trabalhara tão arduamente naquela fortaleza, frequentara tantos sebos, comprara tantos móveis de madeira quanto possíveis e teria estocado filtros de pano se necessário. Ela era como a personagem do filho daquele filme “Adeus, Lênin”, trabalhando incansavelmente para que sua mãe não visse a mudança do mundo. Ou será que era ele?
Voltar a conviver com ela plantou  nele a melancolia mais funda que já conhecera. Afinal, ela, aquela casa, o passado, as traças, enfim, todos os elementos que cabiam no espaço entre os dois eram exatamente a parte do mundo que ele queria congelar. Proteger contra a ação do tempo. Impermeabilizar contra a desagregação. Nesses últimos dias, passou a odiar todos os iconoclastas e toda aquela parte cruel de si mesmo que já quisera renovar o mundo a cada milésimo de segundo.
O enigma da memória começou a enredá-lo e a pressão de lembrar consumia-o tanto mais ela esquecia. O mais difícil para ele foi perder a excepcionalidade, quando ela começou a ralhar com suas tatuagens, “horroroso um homem velho ter o corpo manchado assim”. Às vezes, contudo, a expressão dela mudava e, com olhar cheio de ternura, ela exclamava: “Mas meu menino está cada dia mais bonito!” Deitado na mesma cama que dormia quando criança, o adulto se sentia mais menino que nunca, até no choro copioso e demorado que consumia as madrugadas.
Se ele desejava que todo esse enredo se abreviasse? A mais pura verdade é que não. No fundo, ele ainda teorizava que essa era a última grande lição que ela tinha para ensiná-lo, uma daquelas dinâmicas cabeludas escondidas nos livros de páginas amarelas. Tinha a ver com a memória, mas o resto quase sempre lhe escapava.
Todavia, existia uma situação na qual ele encontrava, ao menos momentaneamente, um sentido completo e profundo e essa teoria delirante até parecia real. Era quando ela o acordava muito cedo e dizia que estava faminta. Então ele a ajudava a se sentar na cadeira de balanço estrategicamente localizada ao lado do fogão. Em seguida, abastecia de sachés industrializados a nova cafeteira eletrônica e contava para ela histórias sobre um mundo onde o café ainda era preparado usando-se filtros descartáveis de papel. Nessa hora, os olhos dela se arregalavam e ele jurava ver um lampejo de fascinação dominá-los, ainda que por um instante infinitesimal. Era só então que ele sabia que o tecido da alma de ambos estava intacto. E isso valia a imensidão e o firmamento, as duas mais belas palavras sofisticadas que ele aprendera com ela.