Para Carol S.
Por que pensar
sobre amantes e tango? Todos intuem a batida comparação, mas olhar atento para as
semelhanças entre o tango e os amantes ensina sobre existência e memória. Dos
amantes e do tango, sabe-se da fúria. A fúria esguia que apossa os corpos e
derrete o espaço, engolido na coreografia frenética do desespero. Dos amantes e
do tango, vê-se que passam apressados pelo palco, como também não olham
espectadores. Donos do mundo ao redor, pisam com força em solo desconhecido,
agitam-se freneticamente nesse local de tudo e nada que se chama“nós”.
Pois no tango,
a dança é sempre a dança da última vez e, portanto, o domínio do espaço e dos
corpos é tão pleno quanto irresponsável, pois espaço e corpos se entregam sem
pensar para a ciranda apaixonante e demolidora. Também assim são os amantes,
desde que o mundo decidiu nomear assim todas as pessoas que passam apressadas e
inteiras, tão ávidas quanto entediadas.
Os amantes
zombam de tudo porque vivem na dança da ultima vez, com um diferencial: a
crença na dança de tempo infinito. Se sentem que durará para sempre essa
entrega irresponsável, se apostam a alma na leveza dos corpos, nos pesos que se
dividem, então podem viver um pouco a sensação de que tem um mundo só deles. O
mundo dos outros está ali, apesar do mundo deles. Eles já leram muito sobre
isso, sabem que repetem o padrão de todos os amantes, podem odiar
sentimentalismo, mas não adianta: todos os amantes dançarão tango mais cedo ou
mais tarde, viverão como se sob a crença de que algumas ingenuidades podem ser
infinitas, de “quem sabe ao menos nossa inocência não será castigada e nossa
felicidade sairá impune?”
Mas nenhuma
dança tem tempo infinito, embora toda dança tenha dois, três ou múltiplos
tempos. Há o tempo dos dançarinos, o tempo da música, o tempo íntimo de cada
um, o tempo do espaço que abriga o movimento, o tempo da memória que escolhe os
flashes únicos que merecem ser guardados. Talvez alguns desses tempos sejam
infinitos, mas, de forma estrita, uma hora a cortina se fecha e o espetáculo
tem fim. Isso não necessariamente significa o fim dos amantes. Há muitas
saídas, algumas boas, algumas ruins, outras péssimas.
Espera-se
dos amantes que não se tornem dançarinos de tango para turistas, aqueles que
emulam um passado sem legitimidade, usam uma tradição espontânea de forma
artificial e assim desconstroem a memória, criam lembranças outras, fabricam
histórias que nunca foram. Não se deve culpá-los, porque geralmente precisam
ficar presos num passado fantasma para encontrar sentido no presente. Contudo,
são infelizes.
A melhor saída
de palco, o melhor fim de dança para os amantes que dançam tango é aquele no
qual eles olham para o público e agradecem. Assim, descobrem que o mundo dos
outros existe, apesar do seu. Daí, podem conseguir até um bom lugar na platéia
para assistirem a próxima dança. De repente, se o amor for grande o suficiente,
se derem alguma sorte e se tiverem realmente boa vontade, conseguem se sentar
lado a lado. Dão lugar para a dança de outros amantes, guardam todo o espaço
que desconstruíram e roubaram durante a própria dança dentro da memória. Lado a
lado, podem voltar para a casa, para talvez um longo tempo que os espera juntos,
para talvez esse mundo prismático de todos, de cada um deles, dos outros, de
nós e de vocês. Pois os amantes da vida toda, aqueles que sobreviverão ao teste
dos anos que passam, do lamento nostálgico da vida vivida, são aqueles capazes
de dançar tango sozinhos no seu quarto escuro depois de um dia sujo de rotina
gasta.
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