Quando e tão logo passa a
avalanche da rotina, dos dias sem conta reclamando de tudo ainda a fazer e
sonhando com a vontade de desligar, sinto que o botão de desligar pifou. Mas
quando reflito atento, a conclusão é ainda pior: preciso muito desligar, mas luto
contra a tendência inercial do meu corpo ao desligamento. Desligar também é
lembrar que é só isso, que se não preenchidas as horas que seguem com tarefas
sem conta, que se não alimentada a enorme ilusão de ser “sabe-se lá como”
importante, o vazio apenas se dilata. E eu odeio falar em vazio, soa como
tristeza de garoto de classe média alta, de habitante de país escandinavo, de indivíduo
que tem todos os predicados para ser feliz e apenas chafurda na melancolia, nos
seus quadros cinematográficos de desertos em preto e branco, onde há paisagens
desoladas de amplitude asfixiante, liberdade perigosa e a imensa sensação de
deslocamento, de não pertencimento , de insignificância...
Nem
sei sobre o que é isso que agora escrevo, é quase como a percepção de que a
agitação é raivosa, mas que preciso cada vez mais dela para não olhar para a
agressividade que tantas vezes se insinua na superfície trêmula da rotina. O
pior é a compreensão da importância do rolo compressor que só me deixa respirar
para reclamar dele entre uma xícara de café e outra. Digo demais sobre o que
faria se tivesse total liberdade, mas a total liberdade me torna melancólico,
ela é como as paisagens áridas dos westerns
em preto e branco que habitam minha mente em noites mal- dormidas: assustadoramente
irresistível e destrutiva. A liberdade é o medo de mim mesmo, é o que sempre
busco apenas porque tenho certeza de que nunca atingirei. Busco a liberdade
como o ente que alimenta a narrativa fraudulenta do meu eu, aquele que diz
sobre quão magnífica seria minha vida se ela estivesse em minhas mãos. Aquela
ideia abstrata que justifica a violência veloz de seguir em frente a qualquer
custo.
Para
mim, o vazio talvez seja a exibição da fraude, o confronto com o medo da
liberdade. Mas sei que essa noção do vazio ainda é incompleta, pois falta a
certeza do deslocamento. É a sensação de deslocamento, de estar sempre no lugar
errado, que me faz correr. Talvez tenha sido ela que impulsionou a Marcha para
Oeste, responsável por tanto sangue derramado e por minhas horas demais gastas
em frente a uma das poucas atividades que me faz parar: a abstração imagética
dos vinte quadros por segundo, esse buraco negro no real que preenche meu vazio
com mais cenas para retroalimentar a melancolia e o frenesi.
Saber
do deslocamento é correr cada vez mais na busca de sujeitar espaços novos, como
se não houvesse outra relação possível com o desconhecido que não a sujeição.
Quando penso em tudo isso, me assusto e me convenço de que devo aprender a
parar. Só que ninguém me ensinou a parar e apenas contemplar a paisagem imensa.
Se eu paro, caio na tentação de acreditar que posso dominá-la à galope feroz. Porque
sua imensidão me assusta. Seu silêncio me perturba. Sua calmaria me enlouquece.
Sua solidão me destrói.
O
vazio, tão rebuscado nesse retrato imperdoavelmente afetado, também pode ser
dito em termos muito simples e infantis: pura solidão. Não sei ficar sozinho,
embora tema tanto esse ente desconhecido que chamo de outro. O outro é a
imensidão que me deixa em pânico. Toda a imensidão de tantas coisas que gente humana
pode ser: tanta coisa incrível, mas imprevisível. Previsível é o motor da
rotina: só para frente, sem chances de retorno, sem escolhas originais. Talvez
esse deslocamento seja apenas o medo infantil do outro, pois não sou tolo de
alimentar a ilusão de que se pode controlar o outro. Um ser humano é assim,
belo porque é como é. E tudo isso me faz entender que talvez o que mais me
atraia na frieza em preto e branco das imagens forjadas (será?) é o calor
humano que irradia delas, porque ele esquenta sem o risco de queimar, já que
está preso na tela de projeção.
O
vazio nunca acabará, isso é fato. Só que existe uma possibilidade ainda não
tentada: a de mergulhar fundo nele. E isso ainda é mais assustador do que gente
humana. Até porque, não se faz isso sozinho: só se faz de mãos dadas com gente
humana com tanto medo como você. E pode ser que isso, mais que todas as
artimanhas ilusórias da rotina, realmente dê importância a vida. A jornada em
direção ao outro: que isso dê uma razão de orgulho com a qual se possa desligar
em paz. Que seja a última cena que eu
contemple antes de me dissolver na paisagem gigante, adimensional, céu e mar
sem fim, vastidão indomável que tanto me aterroriza por lembrar o que sou longe
das muitas xícaras de café: insignificância efêmera. E se há alguma situação em
que uma efemeridade pode ser memorável, é aquela na qual ela é compartilhada e
significada em conjunto.
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