Tudo veio à tona de novo quando
as ruas se encheram de fúria. Não era ele um indignado, por que aquilo o
assustava tanto? Naquela noite sonhou, mas não foi um sonho apenas, foi uma
lembrança editada pelo delírio onírico. Ele numa festa de ano novo, o único de
preto, incapaz de se comunicar, preso demais em si, revoltado por ter certeza
de que ninguém ali era feliz. Mais revoltado ainda por saber que era
espantosamente autoritário e arrogante que tivesse esse tipo de certeza
infundada. Queria livrar-se dela,
esmagá-la, triturá-la. Então dizia para si que tinha que mudar e aceitar que as
pessoas eram muito felizes, o problema era ele, um dia trataria de se
encontrar. Antes, precisava transformar aquele ressentimento e depois a certeza
raivosa morreria naturalmente. Seria uma pessoa muito melhor!
Mas
acordou anos depois com a certeza ainda lá, oscilando entre os extremos eu e mundo:
“onde há espaços em que eu possa caber?” ou “como pode o mundo estar caminhando
para o fim melancólico e merecido da desgraçada espécie humana e todos
continuarem seguindo hipnotizados, como em rebanho?”. Ele condenava-se pelos
dois pensamentos, ambos extremos de uma mesma misantropia a ser combatida.
Contudo, havia a moral cristã que tinha aprendido bem: ela ensinava que a única
agressividade deveria virar energia transformadora e ele seria uma pessoa muito
melhor!
No
mais, sempre falara demais, palavras sem fim, sílabas a dar para um pau.
Odiava demais sua voz, mas gostava de
sua fluência com a língua, embora muitas vezes saísse de círculos sociais com a
impressão de ser o mais desagradável no universo. Nessas horas, pensava em
esfarelar e ralar sua face no chão, tamanha era a raiva que sentia de si mesmo.
Quando ouvia críticas, pedia desculpas, embora no fundo começasse a nutrir certa
raiva pelos seus interlocutores também. É porque ele nem sempre concordava com
as críticas, mas nunca as retrucava. De vez em quando, tinha delírios em que
respondia de forma contundente às represálias esnobes dos outros, sobretudo
àquelas superficiais e muito intolerantes. Nada disso transparecia em suas
desculpas suplicantes e famintas, é claro!
Às
vezes, tinha medo de nunca ser capaz de virar uma pessoa melhor. Tinha tanto
ódio e ressentimento quanto aqueles que ele tanto odiava. E tudo que ele queria
era ser diferente disso. Cansava-se demais nessa luta incessante, na busca pelo
avesso do outro lado do espelho. Enfim, vieram os sonhos e as lembranças com as
ruas cheias de fúria, ruas nas quais ele não conseguia pisar.
Nessa
fase, tornou-se mais agressivo do que nunca em seus diálogos internos, em suas
respostas atravessadas a todo tipo de afirmação que julgava descabida. Aquelas
pessoas diziam defender a todos, mas ele sentia que, na verdade, algumas daquelas pessoas queriam apenas uma coisa: o extermínio dele e de todas as pessoas como
ele, queriam roubar todas as razões que, nesse país, permitiam que as pessoas sorrissem às vezes. Eram como os adolescentes inseguros do Ensino Médio
que, tantas vezes, esfolaram de fato a cabeça dele no chão para encontrar um
sentido que nunca tiveram.
Tudo
piorou ainda mais quando começou a tentar, educada e polidamente, posicionar-se
com toda sua racionalidade auto-contida. Ninguém queria isso. As pessoas queriam
mesmo o esfolamento no asfalto e ele foi descobrindo mais e mais agressividade
e sentimentos represados e acordar todo dia naquele ambiente parecia exigir um
oxigênio que estava em falta na atmosfera nacional.
Ele
sempre fora muito competitivo, mas odiava agredir, brigar e violentar. Isso não
lhe trazia prazer, o sofrimento do outro. Gostava de vencer, mas preferia que
fosse vitória silenciosa: a dor do derrotado quase apagada, guardada numa
escuridão respeitosa. Gostava
de vencer sem que houvesse perdedores. Assim como gostava de não ser machucado,
mas odiava se defender. Assim como odiava fechar as coisas em caixas de
sentidos e catalogar a vida, mas era incapaz de viver sustentado apenas por conceitos
soltos e vagos, mutáveis, mutantes e abertos. Assim como amava a linguagem e
tudo que vinha com ela, todo o poder de imprecisão de suas desculpas que lhe
redimiam sem lhe trair, de suas posições que não lhe manchavam e nem lhe
entregavam, do seu gentil sexo unilateral, toda sua fluidez ambígua definidora,
mas odiava as muitas fissuras que ela exibia em seu tecido semântico resplandecente.
E
dessas contradições fundamentais, dessa ruptura entre dentro e fora, fechado e
aberto, casa e rua, silêncio e multidão, multidão e comunhão, multidão e caos,
multidão e ressentimento, multidão e ele, um grupo e ele, segurança e ruptura,
desse emaranhado de abismos sem fim, vinha sua agressividade, seu espanto mais
perplexo e sua eterna claustrofobia, mas também seu amor mais desvairado pela
vida. Talvez só precisasse parar de tentar fechar os abismos. Talvez bastassem
tocos que servissem de pontes, mesmo que provisórias, para que seu indivíduo
emergisse mais inteiro, menos fragmentado, próximo de sua plenitude. Todavia,
sentia-se mais longe do que nunca da habilidade de construir pontes.
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