Acho
que só escrevo sobre solidão. Talvez por isso, notei que não gosto de escrever
senão para alguém. Sempre escolho, pois, destinatários imaginários. Essa é
para você, que está debruçada próxima a janela, também ouvindo a chuva cair. Você
sabe que é um clichê lamentável e raso. Você é vítima de toda pretensão da boa
literatura ocidental, da excitante articulação política e da fé febril nos
projetos de civilização. Você queria se despir de todo esse mosaico de
excessos, mas tem medo de não achar nada. Então você volta a procurar a
salvação na Igreja na qual sua fé de superfície foi lavrada: folheia alguns
livros diferentes, saboreia a fantasia estética do humano complexo (tantas
camadas quanto um caleidoscópio quebrado!) e se deleita com a incompletude que
benze cada fiel renovado. Em seguida, fica perto da janela enquanto a chuva cai
e tem vontade de escrever. Sim, escrever, porque você também é escrava demais
de sua fé e, no fim, nada é tão complexo assim e a chuva traz em você a
melancolia genérica que traz há tantos personagens e dias que habitam os quilogramas
demais de arte e cultura pop que você consome.
Mas,
que merda, você é tão cínica quanto eu e sabe de tudo isso. Ainda assim, não
consegue se livrar de sua melancolia genérica. Ela parece tão funda, tão bem
gestada em sua solidão confortável, tão ingrata para não ser única! É o
isolamento, você está certa. Eu vejo bem o que você me diz: você também é dúbia
e não gosta tanto assim de você, mas no fundo ainda alimenta a crença secreta
de que é uma boa pessoa. Ou de que será capaz de ser um dia.
Com
a chuva caindo, sua mente se enche de imagens. Sua mente não se importa que seu
mundo seja seu quarto e seus livros: ela te trai com imagens de paisagens,
pessoas, países e vidas do mundo todo. Vidas que você não conhece. Vidas das
quais você não daria conta. A solidão daqueles que realmente tem razões para
chorarem durante a chuva.
A resignação e
a força das mães solteiras que trabalham em dois turnos e ainda pensam nos filhos
vinte e quatro horas lhe enternece especialmente. O completo abandono dos presidiários
lhe intriga. Quem chora por eles? Quem liga? Os que dormem na rua: você cruza
com eles todos os dias e sabe que não faz nada. De qualquer forma, você os vê
na chuva lá fora e não consegue sequer imaginar uma história de vida para eles.
Como chegaram até ali? Algum dia você será capaz de fazer algo por eles? Do que
servirão todos esses excessos?
Você pensa na
solidão resignada desses personagens, resignada na falta de palavras e meios
para dizer, na falta de voz para gritar, na falta de ouvintes para ouvir, na
falta de uma educação burguesa que pudesse lhes incutir a sensação de que eles
têm o direito e a necessidade de dizer: isso mesmo a toca profundamente.
Eu
queria te conhecer. Não que você exista, mas a sensação de que você também
poderia estar escrevendo para mim, às vezes, me acalma. Eu não estou na rua.
Minha família me ama. Eu levanto todos os dias e saio por aí: ocupo meu tempo,
tento ser útil quando dá. Tenho amigos maravilhosos. Só que há um buraco grande
quando a chuva cai. Sim, um buraco, já que já mandei à merda os clichês. Você
não liga para eles, correto? Isso não é bem um concurso literário e bem... Você
já leu até aqui um texto sobre chuva e melancolia, pode lidar com mais esse
lugar-comum. E com os próximos também, porque tenho de dizer que esse buraco
fica no meio do estômago e realmente acelera meus batimentos e eu não aguento
mais agonia que ele gera.
E
se eu te abraçasse em frente à janela chuvosa, como nos filmes? Sinto que nada
mudaria. Só outro excesso estético. Contudo, eu gosto de pessoas que fazem
piadas consigo mesmo e sei que você é muito boa nisso. Preciso acreditar que
daria certo nós passarmos uma tarde juntos. Você fecharia a cortina, eu
esqueceria a chuva e todo esse mundo lá fora que eu nunca vejo. Também esqueceria
os livros, os filmes, a televisão, a internet: os dispositivos que prometem me
contar sobre a realidade, mas que mentem demais para mim. Eles me sufocam de
uma empatia paralisante que não serve para nada e que acaba virando auto
piedade. Nós dois não gostamos de quem somos quando sentimos auto piedade,
certo?
De
qualquer forma, eu sei que eu olharia para você. Talvez eu até olvidasse que
tudo isso é outro clichê, uma versão reciclada do mais barato e raso escapismo
adolescente vendido em cada comédia da sessão da tarde. Você faria uma piada sobre
o fato, como os roteiros dessas comédias também aprenderam a fazer. Nessa hora,
eu olharia de novo para você.
Então gargalharia
doentiamente e esqueceria o meu buraco no estômago, porque ele viraria apenas
dor: dor biológica, a contração de algum músculo após o riso intenso. Nós até
poderíamos chorar copiosamente alguma hora mais tarde e haveria carne e ossos em
nossos abraços. Você teria fome e cozinharíamos juntos. Com certeza, comeríamos
sem afetação, lambuzando os dedos e devorando com desespero a comida. Seríamos animalidade
e corpo imperfeito, presença concreta e pesada a libertar de vez cada pretensão
estéril. Despidos, encontraríamos o sexo e treparíamos até sua pele cansar-se
da minha. Dormiríamos profundamente enlaçados e todas as camadas anteriormente
descartadas voltariam a reconstituir-se. Só que estariam menos superficiais,
curadas dos excessos de abstrações distantes: quase compactas em suas
incompletudes.
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