‘’Não sei, mas sinto que é como
sonhar
Que o esforço pra lembrar
É vontade de esquecer
E isso por que? (diz mais)’’
Que o esforço pra lembrar
É vontade de esquecer
E isso por que? (diz mais)’’
(O Vento – Los Hermanos)
Ele ouviu dizer que ela tinha começado a se
esquecer e isso o machucou fundo. Foi ela quem primeiro lhe ensinou que memória
era sentido e sentido era o tecido da alma. Mas começou com outro tecido, o dos
filtros de café de pano. Desde muito pequeno, ele sentava em sua cadeirinha de
madeira colorida na mesa da cozinha e a observava coando café. Ela sempre
narrava a mesma história, porque ela mesma já fora a menina sentada na cadeira
de madeira, vendo a mãe dela coar café. Só que o filtro era diferente, de pano,
e, por isso, ela dizia, o café da mãe
dela era melhor.
Mulher de hábitos, toda vez ela interrompia
a história nessa parte e tirava da caixa o filtro de papel. Em seguida,
entregava para que o menino deslizasse os pequenos dedos em sua borda e
sentisse a textura. Daí, pegava de volta para adicionar o pó, não sem antes
fazer uma careta e murmurar baixinho: “descartável”.
Ela
odiava as coisas descartáveis, bem como os mundos em desagregação. Ela gostava
da estabilidade da gramática normativa e das palavras sofisticadas, que pescava
em seus livros de páginas amarelas. Às vezes, lia alguns trechos em voz alta,
para alegria do menino.
Ele a amava profundamente desde
muito pequeno, porque ela, toda estabilidade e filtros de pano, conservadorismo
e manias, deu-lhe a proteção dos mundos estáveis.
O
menino cresceu, mas seria injusto dizer que isso a amargurou. Para ela, ele foi
a única grande exceção: a adolescência lhe deu diferentes brincos e piercings,
penteados que não viravam o mês e uma tatuagem no antebraço. A cada uma desses
mudanças, ela reagia com a mesma careta que fazia para os filtros descartáveis.
Contudo, dava-se o luxo de acrescentar: “Em você, até que não fica tão ruim.” E
ele ria por dentro, ele mesmo todo iconoclastia e ira, ressentido contra o
conservadorismo raivoso do mundo. Menos contra o dela. Porque o dela tinha face,
histórias ao pé da cama, as primeiras palavras bonitas e as músicas antigas da
fazenda que ela cantava para ele dormir. Além do cheiro de café fresco, é
claro. Na verdade, ele sofria com ela o tempo que passava e via brotar, de toda
sua instabilidade, um desejo profundo de que ele nunca tivesse saído daquela
cadeira de madeira colorida.
Mais tarde, ela adquiriu o costume
de sentar em bancos de praças e observar um mundo em que ela não mais se
reconhecia. As páginas amarelas e cheias de traças tinham virado aqueles
quadrados futuristas com telas luminosas e design de gosto duvidoso. Os livros,
pelo menos, empilhavam-se aos montes nos guarda-roupas cheios de mofo. Eram
espaço, concretude e permanência.
Os mais novos ralhavam com o habito
dela de acumular, mas ninguém entendia que era só assim que ela se sentia
protegida. Como não viam que aqueles eram os muros de sua fortaleza? O que as
pessoas esperavam? Que fosse possível viver em um mundo em que até as palavras
fossem descartáveis e consumíveis? Era essa a ideia que a oprimia e que ela não
suportaria jamais. E era por causa dessa ideia que, sentada no mesmo banco,
chorava todas as manhãs, meio invisível aos traunseuntes apressados. Na hora do
almoço, o menino escavapa do trabalho e
ia buscá-la. Pegava-a pela mão e a conduzia pacientemente até a porta de casa,
ele também precisando voltar a um passado que nunca habitou.
Infelizmente,
o menino um dia foi morar longe. Nessa época, já tendo perdido alguns fios de
cabelo, também começou a querer ter hábitos. Dessa feita, ligava para ela toda
vez que estava em uma rodoviária. Quase sempre, falavam sobre as mesmas coisas,
embora essa fosse a única situação em que ele, sempre tão afoito, ouvia mais do que falava. E
ela repetia os mesmos temas e narrativas, às vezes mais de uma vez na mesma
ligação. Eram os instantes em que o mundo parecia subitamente tão ruidoso e
novo como melancólico para ele. Contudo, ele só chorava no momento antes de
desligar, quando ela voltava com o mesmo velho verso de um poema muito antigo:
“Não se esqueça, meu querido, a vida é luta renhida. Te amo.” E o nó na
garganta era tão grande que ele respirava fundo para responder que a amava
também.
Ele
sentiu que precisava voltar quando ela começou a não reconhecer a própria casa.
Porque era aquele o único mundo que restava para ela. Se o lugar se fosse, ela
se ia também, uma vez que sua alma aceitaria tudo, menos ser feita de material
descartável. De certa forma, ela sempre soubera disso um pouco antes de
esquecer.
Por isso, ele voltou de fato. Ele
quase não suportava a injustiça da situação. Isso acontecendo logo com ela, que
trabalhara tão arduamente naquela fortaleza, frequentara tantos sebos, comprara
tantos móveis de madeira quanto possíveis e teria estocado filtros de pano se
necessário. Ela era como a personagem do filho daquele filme “Adeus, Lênin”,
trabalhando incansavelmente para que sua mãe não visse a mudança do mundo. Ou
será que era ele?
Voltar a conviver com ela
plantou nele a melancolia mais funda que
já conhecera. Afinal, ela, aquela casa, o passado, as traças, enfim, todos os
elementos que cabiam no espaço entre os dois eram exatamente a parte do mundo
que ele queria congelar. Proteger contra a ação do tempo. Impermeabilizar
contra a desagregação. Nesses últimos dias, passou a odiar todos os
iconoclastas e toda aquela parte cruel de si mesmo que já quisera renovar o
mundo a cada milésimo de segundo.
O enigma da memória começou a
enredá-lo e a pressão de lembrar consumia-o tanto mais ela esquecia. O mais
difícil para ele foi perder a excepcionalidade, quando ela começou a ralhar com
suas tatuagens, “horroroso um homem velho ter o corpo manchado assim”. Às
vezes, contudo, a expressão dela mudava e, com olhar cheio de ternura, ela
exclamava: “Mas meu menino está cada dia mais bonito!” Deitado na mesma cama
que dormia quando criança, o adulto se sentia mais menino que nunca, até no
choro copioso e demorado que consumia as madrugadas.
Se ele desejava que todo esse enredo
se abreviasse? A mais pura verdade é que não. No fundo, ele ainda teorizava que
essa era a última grande lição que ela tinha para ensiná-lo, uma daquelas
dinâmicas cabeludas escondidas nos livros de páginas amarelas. Tinha a ver com
a memória, mas o resto quase sempre lhe escapava.
Todavia, existia uma situação na qual
ele encontrava, ao menos momentaneamente, um sentido completo e profundo e essa
teoria delirante até parecia real. Era quando ela o acordava muito cedo e dizia
que estava faminta. Então ele a ajudava a se sentar na cadeira de balanço
estrategicamente localizada ao lado do fogão. Em seguida, abastecia de sachés
industrializados a nova cafeteira eletrônica e contava para ela histórias sobre
um mundo onde o café ainda era preparado usando-se filtros descartáveis de
papel. Nessa hora, os olhos dela se arregalavam e ele jurava ver um lampejo de fascinação
dominá-los, ainda que por um instante infinitesimal. Era só então que ele sabia
que o tecido da alma de ambos estava intacto. E isso valia a imensidão e o
firmamento, as duas mais belas palavras sofisticadas que ele aprendera com ela.
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