Para L., M., R. e S.
“Você entenderá que a melancolia também tem uma beleza cortante”, foram as palavras que o amigo escapou em seu ouvido, no abraço de despedida. Na época, ele achou que entendia profundamente da beleza que existia na solidão contemplativa, de forma que não avaliou com a cautela devida aquele aforismo barato. Foi só ao olhar a neve caindo através do vidro da janela de seu quarto, contudo, que entendeu o vicío dolorido e reconfortante que só a melancolia saudosa faz adquirir. Ele vinha se dedicando a esse exercício há tempos, é fato, quase como se testasse o quão fundo sua alma podia mergulhar naquele silêncio branco e higiênico. Assim também compreendeu melhor como um mundo limpo poderia ser uma promessa tentadora e perigosa, encarnação maior de nossas pulsões destrutivas. A sujeira dos trópicos sempre lhe pareceria mais vida, o ímpeto que lhe tirava da cama todas as manhãs. Mas esses paradoxos que só se desnudam no silêncio tinham lhe cansado e envelhecido demais.
Não
era a neve, entretanto, o que mais andava lhe cobrando noites de sono
ultimamente. Era o medo de estar vivendo no país errado. Não, não se referia
àquele país que seus pés tocavam nesse momento, aquele que ele sempre soubera
não ser o seu. Tinha mais a ver com o país imaginário, a pátria construída que
carregava dentro de si, seu ethos,
marcado na maneira exagerada com que gargalhava em público, perturbando e denunciando
a harmonia da paisagem branca e silenciosa. Doía-lhe fundo a ideia de que
aquele país não mais existia.
Era irônico que essa fosse a
boa-nova trazida por todos aqueles campos alvos de distância.
A neve lhe fizera voltar a ouvir as
canções da infância, a ler os livros da cultura legítima e a celebrar uma identidade
que nunca soubera sua. Mas de repente ele também descobriu-se lendo livros que
ninguém mais lê, ouvindo músicas sobre as quais poucos ouviram falar e lutando
sozinho para alimentar uma narrativa nacional que, cada vez mais, era negada
pela realidade. E por temer carregar consigo uma pátria imaginada, construída
sobre mitos em desuso, desconfiava que tivesse sido condenado a ser estrangeiro
para sempre.
Ele
procurou soluções, é claro. Queria se acostumar ao estranhamento. Saía para
estudar em diferentes bibliotecas a cada dia, bem como mudava os trajetos que
fazia em suas caminahdas matinais. Observava
introspectivo tudo à volta, o apuro dos detallhes saltando aos olhos,
como um personagem que invadiu um filme que não lhe pertence durante uma cena
particularmente emocional. Era o isolamento pleno, a incomunicabilidade de que
só desfrutam os mais livres. Ainda assim, quantas vezes ele chorava e apenas
queria ficar ainda mais sozinho, em total privacidade com sua pátria imaginada,
o país que não existe mais e talvez nunca mais existirá, o lugar para o qual
não pode mais voltar.
Pensou em certos amigos da vida toda
e amou como nunca sua família. Também internalizou a sabedoria profunda de
outro aforismo barato, um alerta sobre a vida passar a galope, no mais
infinitesimal piscar de olhos. Sim, a neve lhe ensinou sobre a passagem do
tempo e sobre a cruel beleza de sua marcha unidirecional. É claro que também
lembrou da maior paixão do fim da adolescência, aquela que talvez ainda
sentisse o mesmo descolamento que ele, buscando um país sobre o qual desabar.
Também a via pela janela, caras anônimas, pontilhadas na neve branca, tantas
vezes idênticas umas as outras. Entretanto, nenhuma ria da mesma forma
iconoclasta, tampouco cultivava hábito de fazer digressões sobre o vazio,
gastar palavras pelo prazer de sua musicalidade. É que diferente sempre parece
um pouco igual, familiar e cruelmente genérico e impessoal. Estrangeiro em próprio corpo, lamentou
também pela fala perdida e pela lacunas que invadiram a amada língua nativa,
antes tão plena em expressividade. Talvez movido por vãos impulsos
purificadores, permitiu-se, muito mais de uma vez, a manchar a tela em branco com uma multidão
clichês, procurando restabelecer certo sentido completo.
Vezes sem conta revoltava-se por ter
subestimado tanto a rotina: as memórias que mais doíam eram aquelas de
situações que ele vivenciara com a certeza de estarem condenadas à vala comum
das banalidades. Outra vida, outro país, meu país, silêncio ao redor.
O única possível alívio, ainda que
fosse aposta de risco, era encontrar outros ainda presos nesse mundo que
desabou tão rápido, dispostos a encarar a luta vã em defesa de uma narrativa
ultrapassada. Ele adorava essa ideia, adorava a luta pelas narrativas que não
valem a pena senão pela beleza melancólica que sua quase-extinção encerra.
Assim, ele também saiu com pessoas,
os bons amigos das madrugadas geladas, todos rindo coletivamente do
deslocamento para não lembrarem do quão passageiro seria esse contato. Inventou
outros simulacros de pátria, descobriu novas fontes de calor, divertiu-se um pouco com o desespero que só a liberdade
plena traz. Pensou sobre a origem, regrediu ao início, refez fins possíveis, procurou
novas narrativas de país e permitiu-se acreditar no delírio de que voltaria
para a mesma casa de que saíra.
De qualquer forma, ele sabia que aquela
neve nunca desaparecia completamente de sua quente terra natal e, ainda que
essa certeza o fizesse amar ainda mais o aconchego dos trópicos, também plantou
uma dúvida perpétua quanto à veracidade de seu calor intenso e de sua
luminosidade generosa. E essa era a
marca visível de sua condenação, evidência última de que ele seria sempre o homem só na estrada
esquecida, nos confins do Judas, insistindo em penetrar mais fundo naquelas
terras largadas por Deus, naquele país onde ele vagava e sumia, equilibrando-se
pé ante pé num muro imaginário, dançando na corda bamba dos anônimos, sempre a
ponto de ceder à tentação do esquecimento.
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