Alguma utilidade?

Apenas um pouco do que escrevo. Gotas da pretensão que assombra a juventude: a maldita idade lírica, da extrema eloquência com a grande arrogância. Resta apenas desorientação.

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quarta-feira, 19 de outubro de 2011

"Se lembra do futuro que a gente combinou?"

Abriu com calma o envelope. Dentro, apenas um CD. Ficou algumas horas sentado tentando entender a razão daquilo. Depois de tantos anos, sempre nesse precipitar-se vertiginoso, nesse espaço de idas e vindas que só anunciam e não concretizam, de repente, ali estava uma prova material de que ela ainda se lembrava. Antes de ouvir, entregou-se à memória.
Algumas coisas só se entendem do começo ao fim. Outras, destacando-se do todo. Às vezes, um misto dos dois. Veio da adolescência. Talvez seja um bom ponto de partida. Só se lembrava de ter notado que ela era linda. E também que usava uma camiseta dos "Beatles". E por ser a garota linda que tinha uma esquisitice em comum com ele, achou por bem falar “oi”. Já sabia, até antes disso, que ia se apaixonar.
Os primeiros meses foram para planejar a vida. Não que o presente não fosse bom, mas urgia combinar o futuro. Não podiam crescer naquele lugar onde o excesso de decoro nauseava e o maior defeito das pessoas era o perfeccionismo. Ele até entendia porque odiava as boas aparências e os indivíduos adequados, ele mesmo a expressão da inadequação e da insegurança. O que tanto fascinava-o era que ela também odiasse: ela, tão obscenamente bela e bem-aceita.
Planejar também embriaga, mas era assim: a vida correria para as metrpópoles, ambos teriam uma profissão de importante função social e fariam algo pelo mundo. Nossa, como ririam da exitência medíocre das pessoas que discutem no almoço de domingo qual é o melhor frango assado da cidade.
Claro que deu tudo errado. Aliás, até hoje ele não suporta ouvir “Como Nossos Pais”. Fizera uma volta tão grande para fugir do futuro determinado, justo para voltar ali. Ela odiou a rotina das metrópoles e começou a dizer que o amor deles só servia para períodos de planejamento. Era impossível viver com alguém tão pouco prático.Retornou à cidade-natal e se casou com seu vizinho de infância, engenheiro, estável, encarnação das coisas que estão em seu devido lugar.
Quanto a ele, o amante abandonado, acabou desempregado aos vinte cinco. Teve de aceitar um bico na empresa do pai. Casou-se com uma moça dócil, ela mesma a encarnação da invisibilidade. Se era para não viver o que sonhara, pelo menos viveria sem ser visto e sem se ver.
Liberto das divagações, podia escutar as próprias batidas quando saíram os primeiros acordes do rádio. Não conteve o choro: até enxergava a nostalgia emitida pelos primeiros versos de “Maninha”, de Chico Buarque. De repente, ele estava ouvindo sua amada lhe perguntar assustada na boca da noite: “Se lembra do futuro que a gente combinou?” Mas eles não eram nem se sentiam mais crianças.