Levantou-se com a filha lhe
sussurrando algo delicadamente, lembrando-lhe que passara demais da hora de ela
levantar-se. Ela há muito esquecia que tinha de acordar, aquela mistura
interminável de dias e noites, o quarto iluminado sempre e apenas pelo abajur
de cabeceira. Mas a filha quis lhe vestir, lembrou-lhe que ela precisava tirar
aquele pijama, “ainda havia vida lá fora, existe um mundão pulsando mãe, vamos
lá, a senhora tem que se esforçar...”
E
ela, a senhora, entendia algo, ainda que pela metade: captava parte do esforço
da filha, comovia-se até, mas algo a puxava de volta para seu mundo de meios
gestos. Assim lhe vinha a realidade: pela metade, poucas palavras, nem dia nem noite, uma
existência de faces vagamente familiares.
A
filha, contudo, insistia. Ela então cedia ao ritual de todos os dias: reunia
todo esforço que podia para se levantar, deixavam que lhe vestissem, que lhe
contassem histórias e sussurrassem frases motivacionais. Via a dor nos olhos
alheios, mas isso só reforçava seu olhar inexpressivo. Não queria olhares
demais, não era mais capaz de se conectar com tamanha intensidade. A filha a
pegava pelo braço e a guiava lentamente até a porta, pacientemente lhe
relembrava como era andar. E ela ia, conduzida por quem já tantas vezes tivera
de conduzir, num meio papel invertido que
a vida não lhe preparou para encarnar.
E
por raiva da vida, ela ralhava com a filha. Ela ralhava sabendo que não devia,
mas sabendo que jamais pediria desculpas. Algo difuso dentro dela sempre torcia
para que a filha fosse capaz de perdoar e relevar. Raiva despejada no quarto
vazio à meia-luz, ela voltava a andar lentamente. Saíam de casa, rumo à
padaria, ela veria em breve como estava lindo o dia lá fora, lembrava-lhe a
filha. Ao ouvir isso, ela quase se irritava de novo, mas respirava fundo e
seguia em frente. A filha não entendia que, para ela, não havia mais dia. Nem
tampouco noite, o mundo era um borrão incognoscível, algumas vezes mais nítido
pela presença de um quarteirão que lhe invocava certa memória longínqua, sons
que conhecia desde pequena, um rasgo de luz na realidade opaca da memória.
Ela
parava a cada dez metros e pedia para voltar, mas a filha insistia, agora mais
impaciente. Às vezes, demorava-se para fitar um banco na praça do lado da casa,
ou para comentar sobre algum estranho que há muito estava morto. Às vezes, ela
chorava muito. Como a esmagava aquela solidão, a consciência de ser a última
representante de seu mundo. Ela e as ruínas que só ela reconhecia como tais,
era essa a consciência que tomava conta dela a cada instante que estava
desperta. Essa consciência hiperativa era a verdadeira razão pela qual ela
perdera todas as demais consciências, vagando no limbo alaranjado anil de um
mundo sem transições. O tempo não corre, arrasta-se, como se estivesse
descansando depois de perder o fôlego correndo em todos os dias antes daqueles
dias. A partir daqueles dias, que nem dias eram (porque dias não existiam
mais), o tempo só se prolongava lento e estático, a vida como a imagem
embaçada formada pelo ar próximo ao asfalto quando tudo parece quente e imóvel
demais.
Entram
na padaria com delicadeza e todos a olham comovidamente. Ouve a filha pedindo o
pão mais crocante e moreninho, porque sabe que a mãe sempre gostou assim. Ela,
a mãe, prefere observar outra mãe, que está puxando uma criança pelo braço. O
menino grita, mergulha no chão, chacoalha ritmadamente as pernas e berra.
Aponta agonicamente para a vitrine iluminada cheia de doces. A mãe tenta
arrastá-lo para forçar que levante-se, mas ele permanece estático no chão.
Teimoso, parece ficar até mais pesado. A mãe o larga e dirige-se ao carro,
ameaça deixá-lo. Ele não levanta. Ela respira fundo, dá meia volta, agacha-se e
começa a dizer algo no ouvido do menino: de súbito, ele assume uma expressão
suave e corre para sentar no banco de trás do automóvel. A cena lhe lembra
algo, um sentimento que remete ao fenômeno do dia tocando a noite e fazendo
ambos deixarem de ser dia ou noite para serem somente essa unidade arrastada
que ela vivencia a cada segundo. Essa sensação não se articula inteira, contudo,
pois a sensação de espremer-se entre lacunas, como a saltar sobre as pedras de
um riacho, ganha o controle sobre ela novamente. E isso volta a irritá-la
profundamente, mas, por sorte, a filha chega com o pão nesse exato instante e
ela encontra alívio em sua face de afeto.
Outra
lacuna e ela está novamente no quarto iluminado pelo abajur à meia-luz. Um
prato com farelos de pão em sua cabeceira. Ouve a voz da filha, sussurrando ao telefone, vindo de algum cômodo
próximo. Ela se estende na cama e fecha os olhos. A escuridão indefinida
laranja-anil toma conta por alguns minutos antes dela adormecer. E então ela
sonha...
Nos sonhos, há pedaços de madeira
ligando as pedras do riacho. O dia separa-se novamente da noite. Ela é a mãe
puxando o braço do menino para que ele entre no carro. Ela também é a mãe
abaixando e sussurrando palavras conciliadoras no ouvido dele. Depois ela está
na praia assistindo ao sol mergulhar sobre o horizonte tal qual o menino
birrento mergulhando no chão da padaria, como se cedendo espaço para a
escuridão estrelada das noites limpas. A lua lhe pega pelo braço e lhe conduz à imensidão azul, onde todos são solitários e
vizinhos e, por isso, todos veem beleza na solidão. E então ela sente uma paz
de completude que achava não existir. Ela decide não acordar nunca mais.