Alguma utilidade?

Apenas um pouco do que escrevo. Gotas da pretensão que assombra a juventude: a maldita idade lírica, da extrema eloquência com a grande arrogância. Resta apenas desorientação.

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quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Sobre agressividade

             Tudo veio à tona de novo quando as ruas se encheram de fúria. Não era ele um indignado, por que aquilo o assustava tanto? Naquela noite sonhou, mas não foi um sonho apenas, foi uma lembrança editada pelo delírio onírico. Ele numa festa de ano novo, o único de preto, incapaz de se comunicar, preso demais em si, revoltado por ter certeza de que ninguém ali era feliz. Mais revoltado ainda por saber que era espantosamente autoritário e arrogante que tivesse esse tipo de certeza infundada.  Queria livrar-se dela, esmagá-la, triturá-la. Então dizia para si que tinha que mudar e aceitar que as pessoas eram muito felizes, o problema era ele, um dia trataria de se encontrar. Antes, precisava transformar aquele ressentimento e depois a certeza raivosa morreria naturalmente. Seria uma pessoa muito melhor!
            Mas acordou anos depois com a certeza ainda lá, oscilando entre os extremos eu e mundo: “onde há espaços em que eu possa caber?” ou “como pode o mundo estar caminhando para o fim melancólico e merecido da desgraçada espécie humana e todos continuarem seguindo hipnotizados, como em rebanho?”. Ele condenava-se pelos dois pensamentos, ambos extremos de uma mesma misantropia a ser combatida. Contudo, havia a moral cristã que tinha aprendido bem: ela ensinava que a única agressividade deveria virar energia transformadora e ele seria uma pessoa muito melhor!
               No mais, sempre falara demais, palavras sem fim, sílabas a dar para um pau. Odiava  demais sua voz, mas gostava de sua fluência com a língua, embora muitas vezes saísse de círculos sociais com a impressão de ser o mais desagradável no universo. Nessas horas, pensava em esfarelar e ralar sua face no chão, tamanha era a raiva que sentia de si mesmo. Quando ouvia críticas, pedia desculpas, embora no fundo começasse a nutrir certa raiva pelos seus interlocutores também. É porque ele nem sempre concordava com as críticas, mas nunca as retrucava. De vez em quando, tinha delírios em que respondia de forma contundente às represálias esnobes dos outros, sobretudo àquelas superficiais e muito intolerantes. Nada disso transparecia em suas desculpas suplicantes e famintas, é claro!
                Às vezes, tinha medo de nunca ser capaz de virar uma pessoa melhor. Tinha tanto ódio e ressentimento quanto aqueles que ele tanto odiava. E tudo que ele queria era ser diferente disso. Cansava-se demais nessa luta incessante, na busca pelo avesso do outro lado do espelho. Enfim, vieram os sonhos e as lembranças com as ruas cheias de fúria, ruas nas quais ele não conseguia pisar.
                Nessa fase, tornou-se mais agressivo do que nunca em seus diálogos internos, em suas respostas atravessadas a todo tipo de afirmação que julgava descabida. Aquelas pessoas diziam defender a todos, mas ele sentia que, na verdade, algumas daquelas pessoas queriam apenas uma coisa: o extermínio dele e de todas as pessoas como ele, queriam roubar todas as razões que, nesse país, permitiam que as pessoas sorrissem às vezes. Eram como os adolescentes inseguros do Ensino Médio que, tantas vezes, esfolaram de fato a cabeça dele no chão para encontrar um sentido que nunca tiveram.
                Tudo piorou ainda mais quando começou a tentar, educada e polidamente, posicionar-se com toda sua racionalidade auto-contida. Ninguém queria isso. As pessoas queriam mesmo o esfolamento no asfalto e ele foi descobrindo mais e mais agressividade e sentimentos represados e acordar todo dia naquele ambiente parecia exigir um oxigênio que estava em falta na atmosfera nacional.
                Ele sempre fora muito competitivo, mas odiava agredir, brigar e violentar. Isso não lhe trazia prazer, o sofrimento do outro. Gostava de vencer, mas preferia que fosse vitória silenciosa: a dor do derrotado quase apagada, guardada numa escuridão respeitosa. Gostava de vencer sem que houvesse perdedores. Assim como gostava de não ser machucado, mas odiava se defender. Assim como odiava fechar as coisas em caixas de sentidos e catalogar a vida, mas era incapaz de viver sustentado apenas por conceitos soltos e vagos, mutáveis, mutantes e abertos. Assim como amava a linguagem e tudo que vinha com ela, todo o poder de imprecisão de suas desculpas que lhe redimiam sem lhe trair, de suas posições que não lhe manchavam e nem lhe entregavam, do seu gentil sexo unilateral, toda sua fluidez ambígua definidora, mas odiava as muitas fissuras que ela exibia em seu tecido semântico resplandecente.

                E dessas contradições fundamentais, dessa ruptura entre dentro e fora, fechado e aberto, casa e rua, silêncio e multidão, multidão e comunhão, multidão e caos, multidão e ressentimento, multidão e ele, um grupo e ele, segurança e ruptura, desse emaranhado de abismos sem fim, vinha sua agressividade, seu espanto mais perplexo e sua eterna claustrofobia, mas também seu amor mais desvairado pela vida. Talvez só precisasse parar de tentar fechar os abismos. Talvez bastassem tocos que servissem de pontes, mesmo que provisórias, para que seu indivíduo emergisse mais inteiro, menos fragmentado, próximo de sua plenitude. Todavia, sentia-se mais longe do que nunca da habilidade de construir pontes.