Você já pensou
sobre corpos que se abraçam na madrugada improvável? Andei pensando muito sobre
madrugadas improváveis, caro amigo, bem como sobre a alta probabilidade dessas
horas escuras, impassíveis e quentes. Quentes na temperatura humana. Digo
temperatura, pois não gosto da ideia de calor humano. O calor sequer é uma
propriedade dos corpos, tem essência transitória. Na temperatura própria do
humano (e isso nem é de medida objetiva, gosto de pensar que somos de temperatura
irmã dos febris e hipotérmicos também), dois corpos não trocam calor, apenas
colocam suas temperaturas lado-a-lado, dividem aquilo que é propriedade mais
intrínseca do atual estado de seus descaminhos.
Essa ideia, sei bem o que pensas amigo, pode soar mais solitária. A
mim, também soa mais permanente, revestida pelo silêncio de eternidades que só
o tem as madrugadas: ainda só, aproximamos infinitesimalmente nossa temperatura
da do corpo semelhante e, com essa aproximação, não destruímos a integridade
dele (nem a integridade da dor, nem a da solidão, nem a da beleza), mas
chegamos o mais perto possível de entender o alheio sem invadi-lo, como se
fosse o genuíno ato de solidariedade. Aproximamos tanto que ficamos a um sopro
de tocar o espaço de vertigem ao lado, mas nunca o fazemos. Ainda bem, mal
damos conta da nossa vertigem. Bem sabemos como essa distância irrisória dói,
mas é essencial.
Vemos
o abismo de solidão que nos cerca, mas acenamos para o semelhante do outro lado
dele. Talvez combinemos um horário na mesma madrugada para vermos a mesma lua e
lembrarmos que sentimos o mesmo abandono e aconchego quando olhamos o céu vazio
e nos damos conta de que nem a temperatura de todos os humanos somados
aumentaria sequer um grau centigrado do frio galáctico do universo infinito.
Sobre isso, velho amigo, andei pensando que no espaço humano, quase
inexistente, que se coloca entre as temperaturas de dois corpos lado-a-lado,
algum atrito talvez acenda uma fogueira. E fogueiras, em noites serenas de
almas silenciosas, têm o poder de trazer paz. Essa bela imagem, quase soprada
aos meus ouvidos numa madrugada improvável, deu-me um esboço da beleza da nossa
condição: quase ouvi a madrugada, peguei um sussurro espaçado ao redor. Lembrei
que, muitas vezes, é fácil ser feliz ao lado do abismo: basta parar de olhar
para baixo e olhar para frente.