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Apenas um pouco do que escrevo. Gotas da pretensão que assombra a juventude: a maldita idade lírica, da extrema eloquência com a grande arrogância. Resta apenas desorientação.

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domingo, 27 de julho de 2014

Sobre a chuva

“Itabira é apenas uma fotografia na parede/
Mas como dói!”
(Carlos Drummond de Andrade – Confidência do Itabirano)

             Sempre quis escrever sobre a chuva escoando no concreto de ruas vazias e construções simétricas. Não sabia bem o quê naquilo atingia meu âmago. Os anos ensinaram-me que, na verdade, eu queria escrever a respeito de voltar para a casa. A chuva era só o elemento onipresente dos mesmos trajetos da vida toda, que cheiravam como essas ruas vazias lavadas pela chuva.
             Por que é tão difícil andar sobre as mesmas ruas da adolescência? A falta de originalidade do tema é evidente e tantos falaram melhor sobre isso, mas como lidar com esse desconcerto que turva todas as percepções? É possível seguir em frente sabendo-se andando em círculos, indo tão longe para voltar, sempre preso na geometria estéril e reta dos quarteirões silenciosos da juventude?
            Os amigos de outrora parecem amigos de sempre e o cenário de outrora parece estar esculpido nos meus olhos de hoje: tudo ainda esquenta e traz certo sentido de integridade, de agregação súbita de pontos dispersos, reforçando a crença na sabedoria e no sentido do acaso. Isso reconforta, pois repetir o mesmo tema e resgatar velhos personagens é perceber como ainda desempenho bem meu papel originário. Contudo, não impede a rápida eclosão de um segundo incômodo, disfarçado de humor nervoso: a necessidade de expressar o quão aliviado estou por ainda caber naquele personagem, que só é capaz de existir naquele palco de suposta inocência em que foi gestado.
          E isso é como confrontar o desesperado lirismo adolescente, os sonhos não tão antigos, com os rumos da realidade: parece que algo tremendo se perdeu. A energia louca e frenética de descobrir o mundo a cada esquina foi ficando mais cínica e só encontra sua verdadeira voz quando meus passos deslizam pelas pegadas do adolescente que respirava impúbere e impune. Mas o adolescente andava a pé, encharcava-se embriagado na chuva, sentindo-se tão dono de si e de todas as sensações amplas da dilatada, imensa, caleidoscópica vida que o esperava. Hoje, no carro, vidros fechados, tão poucas confianças, apenas a certeza da não-inocência e uma insuspeita tristeza permanente.
          É como se estivesse ainda no mesmo lugar, mas ele tivesse se tornado mais limpo, esterilizado, opaco, profissional, como filme remasterizado que perde o charme e a energia impetuosa que enche de tesão a vida. No fundo, todo cenário pronto põe em cheque aquele que fabricou meus olhos e realça as inúmeras discrepâncias gestadas pela distância do referencial. Duvido demais da minha percepção, mas não sei bem como testá-la, a água se acumula no pára-brisa do porvir e subtrai toda a visibilidade.
  A memória domina, cheia de lembranças não vividas e saudades. O ritmo da chuva é um ácido golpe para meu eu burocrático de hoje, engessado em meio a tantas vielas, sem saber qual rumo tomar, embasbacado por perceber como ainda não se livrou daqueles anos tolos de escolhas tolas, por não ter entendido bem que não havia tantas saídas assim daquelas ruas desertas, minúsculas e quadradas. Também cheio de raiva por tanta chuva tomada aos quinze anos: ela alagou minha roupa, colou-a próxima demais do corpo, penetrou meus poros sempre dilatados e encheu minha alma de melancolia. Se soubesse o quão fundo seria o dano das ruas vazias sob as mesmas madrugadas iguais, talvez pudesse ter levado mais a sério as precauções a serem tomadas em dias chuvosos. Até porque, no meu íntimo, sei que, por um lado, quero desesperadamente encontrar as fissuras que me permitirão quebrar o concreto e construir a verdadeira saída. Mas, por outro lado, se choro profundamente, é pela sensação de que nunca mais vou recuperar aquela vontade desesperada de tomar chuva sobre o corpo todo exposto, devaneando possibilidades sem fim.