Alguma utilidade?

Apenas um pouco do que escrevo. Gotas da pretensão que assombra a juventude: a maldita idade lírica, da extrema eloquência com a grande arrogância. Resta apenas desorientação.

Pesquisar este blog

sábado, 8 de novembro de 2014

Ela, ele, ambos: uma separação em três atos


Ela – Tatuagem
            Já estava esperando há uma semana o momento de chorar em frente ao terapeuta e atropelar as lágrimas enquanto se desintoxicava dele com o falatório frenético:
            - O problema é que ele nunca entendeu a minha solidão. Havia manhãs e manhãs, mas havia também aquelas noites claras em que eu me sentia tão completamente só e só queria que ele me levasse para seu sonho, que sempre parecia harmonia. Quando o apertava forte junto ao meu corpo e o abraçava para nunca mais sair, era para que entendesse que eu queria rasgá-lo, arranhá-lo, marcá-lo e depois sentir vergonha: era minha forma de ter certeza de que estava fora de controle quando cravei fundo em sua pele. Porque aí poderia me enganar e dizer que ele me teve o tempo suficiente para eu apagar de minha fragilidade. Mas o que nos demoliu foi que ele nunca entendia. Ele não entendia nada que não fosse puramente literal e ninguém ia dar conta de pedir as coisas que eu queria pedir: todas as pequenas banalidades que chamávamos de nós, queria ter alguma garantia de que não era só eu que precisava demais daquilo. Mas não era pura mesquinhez, era uma necessidade de me afogar em sua pele, um desespero de chorar menos nas noites claras, uma vontade de me sentir menos sozinha, de ser ilhada por ele, sem nenhuma saída que não nós em todas as direções. E tudo isso começou a assustá-lo, essa minha desesperada agonia vibrante e sei que foi aí que comecei a acabar conosco. E pensar que ele que se foi achando que eu não queria mais. Óbvio que não era isso, ele e seu medo risível das metáforas. Eu só não queria dizer que precisava muito. E na noite em que ele se foi, sonhei que dançava para uma plateia vazia e que isso me entristecia. Ele me assistia dos bastidores e sabia que eu estava melancólica com a plateia vazia, mas mesmo assim continuava nos bastidores. Eu percebia que ele me assistia nos bastidores e que não iria para a plateia, e isso me enchia de mágoa e abandono. Tomada por uma súbita alucinação, eu rodopiava sob luzes tênues que depois começavam a piscar e o rosto dele apenas aparecia como instantâneos fotográficos na escuridão, cada vez mais fugidio, como a zombar de mim, revelando sua natureza etérea e frágil. E eu entendia que era por isso que eu quis tanto tocá-lo e marcar fundo: era esperança de tornar concreto e tangível o rosto de luzes e sonhos que me assistia dos bastidores. E eu girava cada vez mais rápido, pois queria ser tomada completamente pela vertigem ensandecida e apagar. Queria a escuridão. Queria me certificar de que nem todas as marcas na pele, na alma, na rotina, nos lençóis, nos silêncios, nas discussões cheias de fúria e prolixidade, nos olhares transbordando de lamento, nenhuma marca tinha sido suficientemente forte para impedir que ele evaporasse nos bastidores de uma dança sem plateia com luzes que me deixavam tonta. A última coisa de que me recordo antes de desacordar no sonho e acordar para a realidade era da música que tocava ao fundo, soprada dos bastidores agora vazios: “Tatuagem”, de Chico Buarque.
Ele – Trocando em miúdos
            Ele entrou já trôpego no segundo bar e pediu uma dose de cachaça à garçonete mal-humorada. Só queria se embriagar, apoderado sabe-se lá do quê, com a certeza de pertencer ao irresistível clichê dos amantes bêbados e abandonados. E queria se embriagar nas entranhas da madrugada num bar caindo aos pedaços, mal iluminado e vazio, para reforçar seu sentimento de completo abandono e desvelo. Queria reprisar todos os acontecimentos dos últimos meses, queria responder a ela todas as acusações absurdas que fizera. Bem, ele também fizera acusações absurdas e dissera coisas que não se diz, palavras que não se interceptam no ar, que acertam velozes e depois ficam congeladas para garantir que não haverá nunca mais o retorno ao instante imediatamente anterior à eclosão delas. Era por isso que, na maioria das vezes, ele gostava de responder só a uma versão imaginária dela, que existia apenas na cabeça dele e a quem dizia quase tudo que nunca conseguia dizer pessoalmente.
            Perdido nesse exercício de flexão do ego e auto piedade, posou os olhos num karaokê largado no fundo do bar. Nunca cantara em público e sempre odiara expor-se, mas daí lembrou que não havia ninguém ali além dele. Naquele instante, adorou o fato de que, em japonês, karaokê significava orquestra vazia. Adorou porque sentiu aquilo como metáfora de sua situação. E ele adorava metáforas. Pois bem, ele iria cantar com a orquestra vazia para uma plateia de uma pessoa só: ela, sentada na primeira fileira, que ouviria tudo que ele tem a dizer.
            Dirigiu-se ao fundo do bar, pegou o microfone na mão e escolheu qualquer música. Isso era irrelevante. Ele estaria cantando sempre a mesma música: Trocando em miúdos, de Chico Buarque. Ele, como o eu-lírico da música, estaria revendo o saldo de um relacionamento, passando com um trator por cima das pontas soltas, na fúria de transformar tudo em pó o mais rapidamente possível. E enquanto cantava seu drama pessoal olhando diretamente para ela, sentia que se libertava. No meio de sua serenata às avessas, arrancou a aliança do dedo e jogou no chão: assim, nesse teatro de si mesmo, interpretando o personagem que é pura mágoa e ressentimento, tinha certeza de que seguiria em frente.
            Só que ele, ao contrário do eu-lírico da canção, desandou a chorar desesperadamente no meio do show e ela nem se moveu na plateia imaginária que ele criara. Ela permaneceu impassível enquanto ele engolia, sozinho, as lágrimas quentes que emergiam compulsivamente. E então ele começa a sentir-se tonto e nauseado de dor por se alimentar das próprias lágrimas. E cai desacordado no chão frio de um bar abandonado no meio de lugar nenhum.
Ambos – Futuros Amantes
            A garçonete estava cansada daquela cena. Já a assistira inúmeras vezes: homens bêbados abandonados pelas mulheres, que achavam que seus dramas eram os maiores da Terra. Ela jamais tivera ninguém, então era razoável que julgasse o amor uma coisa de tolos. Ela era mais astuta que isso, ela entendia os mecanismos que norteavam o comportamento dos amantes: não passava de sujeição a um modelo cultural de amor romântico criado muito antes de qualquer um de nós nascermos. Ela nunca fora à escola e não desenvolvia essa ideia com tanta prepotência e academicismo, mas sua inteligência rara não deixava escapar o fato de que o tipo “bêbado-amante-abandonado”, tentando conversar com ela sobre dores do abandono, havia crescido muito em frequência ali desde que Reginaldo Rossi fizera muito sucesso com a música “Garçom”.
            Da parte dela, havia uma irritação tremenda com esse egoísmo exacerbado dos amantes, que sempre julgavam sua dor a maior de todas. Ela era assim, amargurada e segura: fizera-se sozinha, não precisava e nem queria precisar de ninguém. Não era tola, porque já fora uma jovem bela e se divertira um pouco com alguns homens. Muito menos do que poderia, é fato, mas é que ela se entediava fácil com tudo aquilo.
            Naquela noite em específico, estava incomodada com aquele rapaz que entrara ali na alta madrugada e não parava de virar doses de cachaça. Ela mesma já teria fechado se o estabelecimento fosse dela, mas ela nunca tivera nada e aprendera a “fazer o que tem que ser feito para continuar viva”, como gostava de dizer. De qualquer forma, achou peculiar (não original, que fique claro!) e até divertida a forma como aquele rapaz gesticulava os lábios e parecia achar que cantava quando pegou o microfone do karaokê. E bem, eram quatro da manhã naquela espelunca que subtraíra metade da sua juventude: fato raro que ela achasse algo divertido!
            É claro que logo o rapaz desmaiou de bêbado e ela teve de chamar uma ambulância e voltar ao seu mau humor costumeiro.  Agora, pelo menos, poderia partir, ela pensou. Enquanto limpava o chão, percebeu que o jovem deixara um anel próximo ao local em que cantava. Ela colocou em sua bolsa, determinada a ver se conseguia vendê-lo no dia seguinte.
            Ao chegar em casa, já amanhecia. Antes de se deitar, pegou-se olhando em frente ao espelho e testando o anel em sua mão. Por um instante fugaz, permitiu-se enganar por tudo aquilo que chamava de “essa bobagem toda”:            fantasiou a história do casal para o qual aquele anel já significara muito. Pensou sobre as noites frias em que eles se sentiram sozinhos e fizeram companhia um ao outro. E também começou a devanear sobre como seria legal ter alguém como companhia quando ela se sentia fraca demais. Mas daí lembrou-se de censurar-se de novo por perder-se naquelas fantasias que, muito antes aprendera, era um luxo ao qual não podia se permitir.
            Sim, ela entendia todos os esses sonhos como luxo.  Sobretudo por ter, desde cedo, consciência de que os homens à sua volta queriam que ela acreditasse ser frágil apenas por ser mulher. Ela sabia quão estúpida era essa ideia, principalmente ela que, graças a Reginaldo Rossi, entendia como ninguém que os homens também tinham delírios românticos, a maior parte deles mais ingênuos e egocêntricos que o das mulheres. De qualquer forma, ela não daria margem alguma para que alguém voltasse a vê-la como frágil. Ela “faria o que fosse necessário para sobreviver”.

            Jogou o anel numa gaveta e prometeu-se penhorá-lo no dia seguinte. Deitou-se em sua cama estável e sonhou que se apaixonava até às raias da loucura por alguém que se apaixonava por ela também e, pela primeira vez, dividia a cama para dormir, entregando-se à instável presença do outro nesse momento de plena vulnerabilidade. Aquele anel nunca saiu daquela gaveta.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Fadiga

Perguntaram-me sobre minha fadiga, mas não soube defini-la. Tentei fadiga na alma, algo como articulações de esperança gasta e a osteoporose do cinismo melancólico tomando conta de tudo. Mas isso se parece com a descrição de um idoso de vida difícil, algo distante demais da minha realidade. Contudo, tenho fadiga. Fadiga até de pensar sobre a fadiga, uma vontade de voltar sempre aos espaços mesmos, de readquirir o direito de se enrolar em cobertores de tédio e segurança. Quando regresso, contudo, fecho os olhos e, mais uma vez, me acabo.
                Encontro paz só quando visualizo você, em qualquer lugar sereno, algum barulho da experiente harmonia ao fundo, nós dois tentando entender porque tantas vezes desencontramos caminhos, porque insistimos em torcer e contorcer os espaços que unem e separam. E ali, nesse delírio onírico de quem nunca se lembra da última vez em que sonhou dormindo, parecemos idosos de verdade, cansados, mas sábios. Fatigados, mas tranquilos.
                Até lá tem muita vida, e isso me assusta. Até porque você sou eu mesmo (ou eu mesma, ainda me pergunto quantos femininos cabem no irredutível e estéril masculino) tentando exercitar as articulações da esperança e recuperar a alma. A tarefa anda parecendo tão difícil, odeio decisões e sinto-me mais medroso. Tão medroso quanto infantil, receoso de um futuro que não existe, saudoso de um passado que não tive. O presente, só fadiga e promessa. Menos promessa, promessa é futuro e futuro é oco como os ossos esburacados da alma.
                No mais, sinto-me fraco, insuportavelmente fraco para quem já devia ser homem, para quem deveria agora exibir o auge do vigor e todas as promessas no olhar. Não o menino completo, aquele que não quer sair de si mesmo, que é brutal sem conseguir assumir a brutalidade, que entende da natureza da violência da vida e prefere ignorá-la. Ignorar pela esperança de haver outras saídas. Ou pelo prazer de lutar por causas perdidas que mais dizem de si do que do mundo.
                Pouco ajuda a sensação de que vivo, conforme diria a icônica música dos Engenheiros do Hawaii, num “país sedento num momento de embriaguez”. Num momento em que parece que todas as opções são uma só: escolher com ódio e cinismo. Como entregar o futuro ao cinismo? E, pela primeira vez, não tenho mais certeza se existe uma opção que contorne tudo, que abra espaços flexíveis nas distorções que produzimos entre nós, eu e eu mesmo, eu e você, eu e um país, um indivíduo e os outros, uma sociedade e eu, um emaranhado de espaços e chances que vão ficando menores, um leque de escolhas que parece tão reduzido. E, ainda assim, novamente canso-me com a perspectiva de ter de escolher, de procurar bifurcações, de abrir estradas no leito seco da vida.

                Abalo-me com tudo e tão à toa que também aprendi a odiar intensamente meu “ar blasé” e minha melancolia. Odeio o sem sentido de se procurar sentido, quero esse lugar leve, quero as duas metades de mim, quero o silêncio contemporizador ao menos uma vez, para curar-me dessa idade suja, desse tempo rancoroso, desse local em que pertencer é ódio e cinismo, dessa fadiga de andar em círculos desesperado e começar a perceber que o combustível uma hora acaba, talvez antes que eu seja capaz de encontrar um pit-stop. Um peão que não para de rodar é só vertigem jogada fora, uma contribuição danosa à entropia metafísica de existir: fadiga. Não de corpo. De alma. Talvez do excesso de nada.

domingo, 27 de julho de 2014

Sobre a chuva

“Itabira é apenas uma fotografia na parede/
Mas como dói!”
(Carlos Drummond de Andrade – Confidência do Itabirano)

             Sempre quis escrever sobre a chuva escoando no concreto de ruas vazias e construções simétricas. Não sabia bem o quê naquilo atingia meu âmago. Os anos ensinaram-me que, na verdade, eu queria escrever a respeito de voltar para a casa. A chuva era só o elemento onipresente dos mesmos trajetos da vida toda, que cheiravam como essas ruas vazias lavadas pela chuva.
             Por que é tão difícil andar sobre as mesmas ruas da adolescência? A falta de originalidade do tema é evidente e tantos falaram melhor sobre isso, mas como lidar com esse desconcerto que turva todas as percepções? É possível seguir em frente sabendo-se andando em círculos, indo tão longe para voltar, sempre preso na geometria estéril e reta dos quarteirões silenciosos da juventude?
            Os amigos de outrora parecem amigos de sempre e o cenário de outrora parece estar esculpido nos meus olhos de hoje: tudo ainda esquenta e traz certo sentido de integridade, de agregação súbita de pontos dispersos, reforçando a crença na sabedoria e no sentido do acaso. Isso reconforta, pois repetir o mesmo tema e resgatar velhos personagens é perceber como ainda desempenho bem meu papel originário. Contudo, não impede a rápida eclosão de um segundo incômodo, disfarçado de humor nervoso: a necessidade de expressar o quão aliviado estou por ainda caber naquele personagem, que só é capaz de existir naquele palco de suposta inocência em que foi gestado.
          E isso é como confrontar o desesperado lirismo adolescente, os sonhos não tão antigos, com os rumos da realidade: parece que algo tremendo se perdeu. A energia louca e frenética de descobrir o mundo a cada esquina foi ficando mais cínica e só encontra sua verdadeira voz quando meus passos deslizam pelas pegadas do adolescente que respirava impúbere e impune. Mas o adolescente andava a pé, encharcava-se embriagado na chuva, sentindo-se tão dono de si e de todas as sensações amplas da dilatada, imensa, caleidoscópica vida que o esperava. Hoje, no carro, vidros fechados, tão poucas confianças, apenas a certeza da não-inocência e uma insuspeita tristeza permanente.
          É como se estivesse ainda no mesmo lugar, mas ele tivesse se tornado mais limpo, esterilizado, opaco, profissional, como filme remasterizado que perde o charme e a energia impetuosa que enche de tesão a vida. No fundo, todo cenário pronto põe em cheque aquele que fabricou meus olhos e realça as inúmeras discrepâncias gestadas pela distância do referencial. Duvido demais da minha percepção, mas não sei bem como testá-la, a água se acumula no pára-brisa do porvir e subtrai toda a visibilidade.
  A memória domina, cheia de lembranças não vividas e saudades. O ritmo da chuva é um ácido golpe para meu eu burocrático de hoje, engessado em meio a tantas vielas, sem saber qual rumo tomar, embasbacado por perceber como ainda não se livrou daqueles anos tolos de escolhas tolas, por não ter entendido bem que não havia tantas saídas assim daquelas ruas desertas, minúsculas e quadradas. Também cheio de raiva por tanta chuva tomada aos quinze anos: ela alagou minha roupa, colou-a próxima demais do corpo, penetrou meus poros sempre dilatados e encheu minha alma de melancolia. Se soubesse o quão fundo seria o dano das ruas vazias sob as mesmas madrugadas iguais, talvez pudesse ter levado mais a sério as precauções a serem tomadas em dias chuvosos. Até porque, no meu íntimo, sei que, por um lado, quero desesperadamente encontrar as fissuras que me permitirão quebrar o concreto e construir a verdadeira saída. Mas, por outro lado, se choro profundamente, é pela sensação de que nunca mais vou recuperar aquela vontade desesperada de tomar chuva sobre o corpo todo exposto, devaneando possibilidades sem fim.

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Sobre o Vazio

                 Quando e tão logo passa a avalanche da rotina, dos dias sem conta reclamando de tudo ainda a fazer e sonhando com a vontade de desligar, sinto que o botão de desligar pifou. Mas quando reflito atento, a conclusão é ainda pior: preciso muito desligar, mas luto contra a tendência inercial do meu corpo ao desligamento. Desligar também é lembrar que é só isso, que se não preenchidas as horas que seguem com tarefas sem conta, que se não alimentada a enorme ilusão de ser “sabe-se lá como” importante, o vazio apenas se dilata. E eu odeio falar em vazio, soa como tristeza de garoto de classe média alta, de habitante de país escandinavo, de indivíduo que tem todos os predicados para ser feliz e apenas chafurda na melancolia, nos seus quadros cinematográficos de desertos em preto e branco, onde há paisagens desoladas de amplitude asfixiante, liberdade perigosa e a imensa sensação de deslocamento, de não pertencimento , de insignificância...
                Nem sei sobre o que é isso que agora escrevo, é quase como a percepção de que a agitação é raivosa, mas que preciso cada vez mais dela para não olhar para a agressividade que tantas vezes se insinua na superfície trêmula da rotina. O pior é a compreensão da importância do rolo compressor que só me deixa respirar para reclamar dele entre uma xícara de café e outra. Digo demais sobre o que faria se tivesse total liberdade, mas a total liberdade me torna melancólico, ela é como as paisagens áridas dos westerns em preto e branco que habitam minha mente em noites mal- dormidas: assustadoramente irresistível e destrutiva. A liberdade é o medo de mim mesmo, é o que sempre busco apenas porque tenho certeza de que nunca atingirei. Busco a liberdade como o ente que alimenta a narrativa fraudulenta do meu eu, aquele que diz sobre quão magnífica seria minha vida se ela estivesse em minhas mãos. Aquela ideia abstrata que justifica a violência veloz de seguir em frente a qualquer custo.
                Para mim, o vazio talvez seja a exibição da fraude, o confronto com o medo da liberdade. Mas sei que essa noção do vazio ainda é incompleta, pois falta a certeza do deslocamento. É a sensação de deslocamento, de estar sempre no lugar errado, que me faz correr. Talvez tenha sido ela que impulsionou a Marcha para Oeste, responsável por tanto sangue derramado e por minhas horas demais gastas em frente a uma das poucas atividades que me faz parar: a abstração imagética dos vinte quadros por segundo, esse buraco negro no real que preenche meu vazio com mais cenas para retroalimentar a melancolia e o frenesi.             
               Saber do deslocamento é correr cada vez mais na busca de sujeitar espaços novos, como se não houvesse outra relação possível com o desconhecido que não a sujeição. Quando penso em tudo isso, me assusto e me convenço de que devo aprender a parar. Só que ninguém me ensinou a parar e apenas contemplar a paisagem imensa. Se eu paro, caio na tentação de acreditar que posso dominá-la à galope feroz. Porque sua imensidão me assusta. Seu silêncio me perturba. Sua calmaria me enlouquece. Sua solidão me destrói.
             O vazio, tão rebuscado nesse retrato imperdoavelmente afetado, também pode ser dito em termos muito simples e infantis: pura solidão. Não sei ficar sozinho, embora tema tanto esse ente desconhecido que chamo de outro. O outro é a imensidão que me deixa em pânico. Toda a imensidão de tantas coisas que gente humana pode ser: tanta coisa incrível, mas imprevisível. Previsível é o motor da rotina: só para frente, sem chances de retorno, sem escolhas originais. Talvez esse deslocamento seja apenas o medo infantil do outro, pois não sou tolo de alimentar a ilusão de que se pode controlar o outro. Um ser humano é assim, belo porque é como é. E tudo isso me faz entender que talvez o que mais me atraia na frieza em preto e branco das imagens forjadas (será?) é o calor humano que irradia delas, porque ele esquenta sem o risco de queimar, já que está preso na tela de projeção.

                O vazio nunca acabará, isso é fato. Só que existe uma possibilidade ainda não tentada: a de mergulhar fundo nele. E isso ainda é mais assustador do que gente humana. Até porque, não se faz isso sozinho: só se faz de mãos dadas com gente humana com tanto medo como você. E pode ser que isso, mais que todas as artimanhas ilusórias da rotina, realmente dê importância a vida. A jornada em direção ao outro: que isso dê uma razão de orgulho com a qual se possa desligar em paz.  Que seja a última cena que eu contemple antes de me dissolver na paisagem gigante, adimensional, céu e mar sem fim, vastidão indomável que tanto me aterroriza por lembrar o que sou longe das muitas xícaras de café: insignificância efêmera. E se há alguma situação em que uma efemeridade pode ser memorável, é aquela na qual ela é compartilhada e significada em conjunto.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Sobre palavras como grilhões

Resenha do filme “A Hora do Show” (Bamboozled, 2000, Spike Lee) escrita para Aciepe “Direitos Humanos pelo Cinema”, oferecida pelo departamento de Sociologia da UFSCAR (Texto escrito em 2012)

   Em setembro de 2012, ganhou alguma notoriedade o julgamento que o STF realizou para deliberar se a obra “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, poderia ou não - e de que forma - ser distribuída nas escolas públicas. A obra claramente faz referência aos negros com estereótipos racistas, sobretudo nos diálogos entre a boneca Emília e Tia Anastácia. Entre grupos que se esguelaram em defesa da liberdade de expressão e outros que lutaram pela completa paralisação na distribuição da obra, pairou a sombra pesada do ciclo de fogo de nossa história: o desejo de apagar a permanência silenciosa do que não se mostra se debateu contra o medo premente das consequências de se assumir a verdade óbvia de que palavras e signos culturais não são inocentes.
   O caso brasileiro guarda analogias (e muitas diferenças também) com o cenário delineado por Spike Lee em seu filme “A Hora do Show” (Bamboozled, Spike Lee, 2000), possivelmente o mais polêmico de uma filmografia já conhecida por acender ânimos. Não se pode acusar o filme de apontar soluções fáceis. Do contrário, ele enreda-nos num labirinto que só escancara a persistência do que tentamos negar: das hierarquias invisíveis que se infiltram nas hierarquias oficiais e que marcam tensões racistas entre negros e brancos até quando os atores sociais supostamente
ocupam a mesma posição no campo.
   Pierre Delacroix, nosso protagonista, não é Pierre Delacroix (DamonWayans), e sabemos, de alguma forma, que ele tem ciência disso. Sua meta é simples: emplacar, como roteirista, seu primeiro grande sucesso na TV. Defende sua grande ideia como uma sátira. Ele faria uma remontagem escrachada dos shows “black face” dos séculos XIX e XX, carregados de piadas racistas, como forma de expor o absurdo através do exagero, da hipérbole: descamar os níveis
invisíveis do preconceito por meio de suas expressões mais gritantes e concretas.
   Se Spike Lee nunca poupou ninguém e já foi dito que o filme não oferece soluções fáceis, é evidente que tudo desanda. O show é um sucesso, vários conflitos raciais que estavam em banho-maria são escancaradas e, de fato, não sobra ninguém. No roteiro, claramente há um pathos central, uma hipótese a ser provada. E, no desenrolar da trama, as evidências parecem convergir para a tese de forma desconcertante: trata-se de denunciar a forma como a mídia e a indústria do entretenimento, criada num país racialmente cindido e operada majoritariamente por brancos de classe média, transmitiu e perpetuou diversas caricaturas e estereótipos negativos sobre a população negra.
    Consciente ou não, esse mecanismo de dominação atua fortemente , no âmbito da legitimidade simbólica, para garantir a permanência do racismo e da submissão de um grupo étnico a outro.
O público pode estar rindo e os teóricos da liberdade de expressão podem até dizer que isso é o maior exemplo de que a chaga foi superada. Spike Lee mostra que não: riso também pode ser sinônimo de nervosismo, medo, desespero e, por fim (por que não?), muito ódio.
    A forma como todo esse filme de tese é conduzido, contudo, é seu grande trunfo. Sim, ele parece carregado de uma certa raiva frenética, um certo impulso demolidor desesperado. Por controverso que o ponto seja, essa estratégia argumentativa é muito adequada à temática: não se fala de tabus que causam mal - estar senão com certa agressividade. Tabus já se insinuam com sutilezas e, por isso, são tabus. No mais, é dessa forma que o diretor diz muito ao espectador. O título do filme, no original, é Bamboozled, algo como enganado. Não só estavam enganados os personagens-centrais que constroem esse conto de fadas às avessas tão somente para “manter o público rindo", como também estava enganado o espectador quando, ao longo do filme, tentou tantas vezes entender e inocentar aqueles personagens. Afinal, como poderia querer Pierre Delacroix, ele mesmo negro, propagar o racismo?
   A cena final, contudo, desfaz o engano: reunindo imagens documentais de programas, desenhos e seriados americanos que mostram o retrato estereotipado dado aos negros, o diretor nos ensina que há algo além da intencionalidade: uma espécie de caldo cultural no qual já estamos imersos, no qual todos esses estereótipos já foram gestados pela história que nos precedeu. Não que o diretor roteirista tenha interesse em inocentar. Antes, quer esbofetear a hipocrisia para lembrar que todos somos culpados.
   E se a culpa é coletiva, não se deve permitir a crença em coincidências: tia Anastácia não foi retratada como cozinheira por acaso. Se assumirmos o acaso e a omissão nas expressões simbólicas, brincamos com os signos. E é exatamente isso que não devemos fazer: os signos são perigosos, tão perigosos que podem se revoltar e liberar todas as camadas ideológicas por trás de sua suposta literariedade completa. Pacificado em sua superfície e submetido ao teste do tempo, um signo pode sugerir que já deixou uma ou outra de suas representações para trás. Que tal
sentido não lhe pertence mais. Novamente, podemos estar enganados.
   Os brinquedos de teor preconceituoso que se acumulam na sala de Pierre Delacroix, os quais ele tenta desesperadamente destruir no final, talvez sejam o melhor exemplo desse dizer que se espalha em silêncio, que não se apaga, que não se quebra. Posto dessa forma, parece que o diretor não enxerga saída. Novamente, tal análise é injusta. O filme também é uma denúncia e quem denuncia acredita em soluções e não desistiu.
  Talvez Spike Lee gostasse de saber do julgamento sobre a obra de Monteiro Lobato que está ocorrendo no STF. Não se trata de vedar o contato com a representação, porque isso seria hipocrisia. Ela já foi gestada e diz da nossa história. Trata-se de garantir (sobretudo na infância, já que o público-alvo das obras de Lobato são as crianças) que esse contato seja feito de forma adequada, lembrando o significado secreto que pode estar incutido num símbolo aparentemente ingênuo.
   É impossível esquecer a lição que a mãe do protagonista lhe diz com a voz embargada, em conversa pelo telefone, já na segunda metade do filme: “Um macaquinho será sempre um macaquinho (...) Estou profundamente desapontada com você”. Em tempos de humor politicamente incorreto, em que rir do diferente parece expiar nossa culpa, o filme parece incomodamente urgente. Porque nunca foi tão verdade que uma palavra também pode ser um grilhão.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Sober marcar a própria pele

   Ele a observou calmamente, óbvio que não era bela. De fato, também não era magra, nem possuía aquela feminilidade traiçoeira de esguias curvas e movimentos sinuosos demais. Tampouco era jovem. Morena, cabelos compridos. Reparou, contudo, suas feições melancólicas, seus olhos fundos e recheados de cansaço, a forma lenta e delicada como empacotava as compras: tudo nela era a imagem da solidão paciente. Paciente, mas não resignada. Estava maquiada, na segunda-feira à noite, para uma ida ao mercado. Na verdade, sua maquiagem era carregada, havia algo de teatral na forma como se pintara. Uma tatuagem que discretamente se deixava ver no espaço de pele nua das costas que, tal qual uma janela, a blusa parecia expor sem querer. Tudo aquilo, de alguma forma, o comoveu.
   Como lhe era de hábito, ficou fantasiando as histórias pregressas, o rico e minucioso universo pessoal da anônima desconhecida. Ele adorava essa atividade, sempre o fazia lembrar que a humanidade podia também ser apaixonante. Ela talvez já fora muito bela e desejada quando jovem, talvez muito amada, daí a sensação que ele tinha de que ela era a imagem de uma pessoa apagada. E isso era claramente diferente do que via nas pessoas que ainda procuravam brilhar, mas que nunca sentiam que seriam capazes. Essas costumam ser cruéis, ambiciosas, com sua energia louca, sua felicidade egoísta, seus tantos planos demais. As pessoas que já apagaram, do contrário, são mais frequentemente amarguradas ou apenas de uma tristeza discreta de tão singela.
   Sim, enquanto ela empacotava sua última compra, pensou que ela era singela. Quando ela se virou para colocar as sacolas no carrinho de supermercado, notou que a tatuagem em suas costas era de uma borboleta. Mas a borboleta dela já não era mais a tatuagem genérica por excelência, porque a pele oculta da desconhecida anônima passava a ganhar unicidade na mente dele. Porque agora a imagem se conformava aos delírios e reforçava outra condição: ela estava fixada e presa a um solitário universo pessoal imaginado. Ele esboçou mentalmente os muitos roteiros da história daquela tatuagem: quisera apenas provocar os pais? Ficara de porre com algumas amigas e tomou uma decisão no impulso? Queria ser vista com a pele marcada por algum cara que, no fundo sabia ela, gostava de marcas à vista para lembrar de marcas mais profundas?
   Por que as pessoas marcam a pele? Essa segunda indagação quase o fez perder a estranha de vista, mas ele pagou rápido seu último item e acompanhou o trajeto dela até o estacionamento. Há muitas razões, decerto, mas esse ato de auto violência sempre o seduziu. Estava claro que o fascinavam as mulheres tatuadas, as pessoas que, de alguma forma, no corpo, estampam a violência da alma. Nem tudo é violência na marca, isso também é fato. Mas se ele embasbacava tanto com essas ideias, por que nunca teve coragem de marcar a própria pele?
    Já pensara nisso antes, decerto, mas como aquelas hipóteses vagas e distantes da realidade. Pois a ideia de permanência o assustava. E também, no fundo, sabia que tinha suas próprias formas de marcar e sujar e limpar e gritar pelo corpo o sufoco de, dia após dia, ter de continuar fingindo que não sente falta da comunhão e da completude.
    Os pensamentos centraram-se de novo só nele e no fato de sentir-se seduzido (ou querer deixar-se seduzir?) por pessoas que lhe encarnam a imagem da solidão. Bem sabe que poderia gostar mais de si mesmo se acreditasse que amava as alteridades ocultas, mas, na verdade, no fim sabia que essas pessoas imaginadas faziam ele se sentir compreendido. E então a questão voltava a ele e ele se chocava ao perceber que ele nunca tinha virado um homem.
   Tinha certeza de que, mesmo que conquistasse toda autonomia do mundo e todos os seus predicativos de sucesso, mesmo que se relacionasse como quem não precisa, a solidão também estaria em seus olhos enquanto empacotasse suas compras no supermercado divagando sobre anônimas desconhecidas e igualmente solitárias. E ainda seria uma criança, como todos os homens a sua volta. Crianças manipuláveis, cheios de desejo de serem guiados enquanto interpretam o papel de quem guia, plenamente conscientes que se deixam enganar. E ficou pensando se alguma anônima solitária o observara. De fato, o ego tem seus caprichos, talvez excessivos demais.
  Antes que ela entrasse no carro, fingiu esbarrar nela. Pediu desculpas, mas ela sorriu compreensiva. Ele se ofereceu para ajudá-la a guardar as compras como recompensa. Perguntou coisa ou outra banal e suas respostas eram sempre delicadas, gentis e partidas: aquelas respostas que dizem pouco, dão a entender que há muito mais e conferem todo ar de incompletude e pressa a todas as conversas.
    Descobriu, contudo, que moravam no mesmo bairro. Ela lhe ofereceu uma carona, gesto raro nesse mundo de derretidas confianças. Ele aceitou de prontidão. Talvez ela fosse mesmo um pouco solitária, talvez ele estivesse tão apaixonado pela imagem que criara que conseguiria encaixar qualquer anônima desconhecida naquela moldura. Como saber? Já pensara muito sobre isso, as construções simbólicas que sustentaram todos os seus relacionamentos e os levaram a acabar. Mas todos os relacionamentos são assim, não? Quem poderia culpa-lo por isso? Ou será que, no caso dele, fosse pior? Que só ele sempre enxergasse o mesmo mundo, aquele já criado pela sua subjetividade em alguma instância inacessível?
    Ela tinha batom vermelho nos lábios, mordia eles devagar enquanto dirigia por novas ruas e ele apenas descansou os olhos naquela imagem pelos dez minutos do silencioso percurso. Antes de descer, conseguiu o telefone dela. Ficou de ligar para combinarem de se ver. Não saberia jamais responder às últimas indagações, as que a vida toda o inquietaram. Com exceção de uma: parecia-lhe estúpido agora pensar que qualquer uma poderia ter preenchido, para ele, o papel que criara para a bela estranha meia hora atrás no mercado. Por alguma razão ardilosa, tinha certeza de que apenas ela caberia nele. E então teve certeza que iria se apaixonar. E, pela enésima vez na vida, foi preenchido pelo sentimento que lhe faz entender por que as pessoas marcam a própria pele.