Alguma utilidade?

Apenas um pouco do que escrevo. Gotas da pretensão que assombra a juventude: a maldita idade lírica, da extrema eloquência com a grande arrogância. Resta apenas desorientação.

Pesquisar este blog

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Memória

‘’Não sei, mas sinto que é como sonhar 
Que o esforço pra lembrar 
É vontade de esquecer 
E isso por que? (diz mais)’’

(O Vento – Los Hermanos)

          Ele ouviu dizer que ela tinha começado a se esquecer e isso o machucou fundo. Foi ela quem primeiro lhe ensinou que memória era sentido e sentido era o tecido da alma. Mas começou com outro tecido, o dos filtros de café de pano. Desde muito pequeno, ele sentava em sua cadeirinha de madeira colorida na mesa da cozinha e a observava coando café. Ela sempre narrava a mesma história, porque ela mesma já fora a menina sentada na cadeira de madeira, vendo a mãe dela coar café. Só que o filtro era diferente, de pano,  e, por isso, ela dizia, o café da mãe dela era melhor.
Mulher de hábitos, toda vez ela interrompia a história nessa parte e tirava da caixa o filtro de papel. Em seguida, entregava para que o menino deslizasse os pequenos dedos em sua borda e sentisse a textura. Daí, pegava de volta para adicionar o pó, não sem antes fazer uma careta e murmurar baixinho: “descartável”.
        Ela odiava as coisas descartáveis, bem como os mundos em desagregação. Ela gostava da estabilidade da gramática normativa e das palavras sofisticadas, que pescava em seus livros de páginas amarelas. Às vezes, lia alguns trechos em voz alta, para alegria do menino.
Ele a amava profundamente desde muito pequeno, porque ela, toda estabilidade e filtros de pano, conservadorismo e manias, deu-lhe a proteção dos mundos estáveis.
          O menino cresceu, mas seria injusto dizer que isso a amargurou. Para ela, ele foi a única grande exceção: a adolescência lhe deu diferentes brincos e piercings, penteados que não viravam o mês e uma tatuagem no antebraço. A cada uma desses mudanças, ela reagia com a mesma careta que fazia para os filtros descartáveis. Contudo, dava-se o luxo de acrescentar: “Em você, até que não fica tão ruim.” E ele ria por dentro, ele mesmo todo iconoclastia e ira, ressentido contra o conservadorismo raivoso do mundo. Menos contra o dela. Porque o dela tinha face, histórias ao pé da cama, as primeiras palavras bonitas e as músicas antigas da fazenda que ela cantava para ele dormir. Além do cheiro de café fresco, é claro. Na verdade, ele sofria com ela o tempo que passava e via brotar, de toda sua instabilidade, um desejo profundo de que ele nunca tivesse saído daquela cadeira de madeira colorida.
Mais tarde, ela adquiriu o costume de sentar em bancos de praças e observar um mundo em que ela não mais se reconhecia. As páginas amarelas e cheias de traças tinham virado aqueles quadrados futuristas com telas luminosas e design de gosto duvidoso. Os livros, pelo menos, empilhavam-se aos montes nos guarda-roupas cheios de mofo. Eram espaço, concretude e permanência.
Os mais novos ralhavam com o habito dela de acumular, mas ninguém entendia que era só assim que ela se sentia protegida. Como não viam que aqueles eram os muros de sua fortaleza? O que as pessoas esperavam? Que fosse possível viver em um mundo em que até as palavras fossem descartáveis e consumíveis? Era essa a ideia que a oprimia e que ela não suportaria jamais. E era por causa dessa ideia que, sentada no mesmo banco, chorava todas as manhãs, meio invisível aos traunseuntes apressados. Na hora do almoço, o  menino escavapa do trabalho e ia buscá-la. Pegava-a pela mão e a conduzia pacientemente até a porta de casa, ele também precisando voltar a um passado que nunca habitou.
         Infelizmente, o menino um dia foi morar longe. Nessa época, já tendo perdido alguns fios de cabelo, também começou a querer ter hábitos. Dessa feita, ligava para ela toda vez que estava em uma rodoviária. Quase sempre, falavam sobre as mesmas coisas, embora essa fosse a única situação em que ele,  sempre tão afoito, ouvia mais do que falava. E ela repetia os mesmos temas e narrativas, às vezes mais de uma vez na mesma ligação. Eram os instantes em que o mundo parecia subitamente tão ruidoso e novo como melancólico para ele. Contudo, ele só chorava no momento antes de desligar, quando ela voltava com o mesmo velho verso de um poema muito antigo: “Não se esqueça, meu querido, a vida é luta renhida. Te amo.” E o nó na garganta era tão grande que ele respirava fundo para responder que a amava também.
           Ele sentiu que precisava voltar quando ela começou a não reconhecer a própria casa. Porque era aquele o único mundo que restava para ela. Se o lugar se fosse, ela se ia também, uma vez que sua alma aceitaria tudo, menos ser feita de material descartável. De certa forma, ela sempre soubera disso um pouco antes de esquecer.
Por isso, ele voltou de fato. Ele quase não suportava a injustiça da situação. Isso acontecendo logo com ela, que trabalhara tão arduamente naquela fortaleza, frequentara tantos sebos, comprara tantos móveis de madeira quanto possíveis e teria estocado filtros de pano se necessário. Ela era como a personagem do filho daquele filme “Adeus, Lênin”, trabalhando incansavelmente para que sua mãe não visse a mudança do mundo. Ou será que era ele?
Voltar a conviver com ela plantou  nele a melancolia mais funda que já conhecera. Afinal, ela, aquela casa, o passado, as traças, enfim, todos os elementos que cabiam no espaço entre os dois eram exatamente a parte do mundo que ele queria congelar. Proteger contra a ação do tempo. Impermeabilizar contra a desagregação. Nesses últimos dias, passou a odiar todos os iconoclastas e toda aquela parte cruel de si mesmo que já quisera renovar o mundo a cada milésimo de segundo.
O enigma da memória começou a enredá-lo e a pressão de lembrar consumia-o tanto mais ela esquecia. O mais difícil para ele foi perder a excepcionalidade, quando ela começou a ralhar com suas tatuagens, “horroroso um homem velho ter o corpo manchado assim”. Às vezes, contudo, a expressão dela mudava e, com olhar cheio de ternura, ela exclamava: “Mas meu menino está cada dia mais bonito!” Deitado na mesma cama que dormia quando criança, o adulto se sentia mais menino que nunca, até no choro copioso e demorado que consumia as madrugadas.
Se ele desejava que todo esse enredo se abreviasse? A mais pura verdade é que não. No fundo, ele ainda teorizava que essa era a última grande lição que ela tinha para ensiná-lo, uma daquelas dinâmicas cabeludas escondidas nos livros de páginas amarelas. Tinha a ver com a memória, mas o resto quase sempre lhe escapava.
Todavia, existia uma situação na qual ele encontrava, ao menos momentaneamente, um sentido completo e profundo e essa teoria delirante até parecia real. Era quando ela o acordava muito cedo e dizia que estava faminta. Então ele a ajudava a se sentar na cadeira de balanço estrategicamente localizada ao lado do fogão. Em seguida, abastecia de sachés industrializados a nova cafeteira eletrônica e contava para ela histórias sobre um mundo onde o café ainda era preparado usando-se filtros descartáveis de papel. Nessa hora, os olhos dela se arregalavam e ele jurava ver um lampejo de fascinação dominá-los, ainda que por um instante infinitesimal. Era só então que ele sabia que o tecido da alma de ambos estava intacto. E isso valia a imensidão e o firmamento, as duas mais belas palavras sofisticadas que ele aprendera com ela.

domingo, 11 de outubro de 2015

Minha Cara

         Novamente, senti que precisava escrever para você. Como todo o desejo que se constrói durante anos, esse também resvalou para todos os aspectos da realidade. Não tenho ideia de como anda sua vida hoje. Não sei se ainda emenda diálogos com letras musicais, nem se toma apenas leite desnatado. Na verdade, confesso que, durante muito tempo, gastava algumas horas no exercício de imaginar como você poderia estar. Isso me lembra de você dizendo que eu estava demorando demais para perder alguns hábitos. E é claro que você estava certa. Posso dizer, ao menos, que mudei. De qualquer forma, a memória prega peças e é inevitável que o passado vire desejo e o desejo se esconda numa realidade adulterada.
 Perdoe-me, mas ainda gosto de lembrar daqueles tempos, tão cheios de ingenuidade que era mais do que óbvio que não poderiam durar. Sinto que os vivi com a consciência dos personagens de tragédia, tão cegos quanto sensíveis à fatalidade de seus próprios destinos. Brasil-China, nossa geração indo para algum lugar, eu estava onde queria estar pela primeira vez na vida, a multidão de pecados subitamente esquecida pelo hino da conciliação. Você sentada ao meu lado no ônibus, a cidade imunda lá fora, a alegria dos sobreviventes em cada piada de mau gosto sobre nossas fraquezas.
E aquela viagem para a praia, então? Bebendo o dia inteiro enquanto o sol se movia no céu, você zombando de minhas suposições apocalípticas, porque afinal aquilo nunca poderia acontecer comigo nem em nosso país, as coisas estavam mudando e  nada seria como antes. Jamais. Quando o sol descia ao fim da tarde, cerveja entupindo nossos poros, corpos inconcebivelmente quentes, o céu tingido de laranja estanque e o mundo entrando naquele tempo que demora e parece ser o mesmo de sempre, lembro claramente de resgatar uma memória da infância. Aquela memória de quando ia para a fazenda com meus pais e voltava só no fim da tarde, sozinho no banco de trás do carro, olhando desolado o laranja infiel do céu e sentindo-me oco. O céu prometia demais, mas a vida teria de ser imensa para tantas promessas. Não me sentia pronto para um futuro tão largo, mas fingia não me importar:  tinha tempo. E daí chegava em casa,  minha mãe me servia a sopa que detestava e eu me deitava de barriga na cama e assistia aos horrorosos programas dominicais, meu pai embriagado roncando no sofá do lado: e tudo cabia bem nesses pequenos gestos banais.
Sim, já disse que lembranças não são confiáveis, tão menos lembranças dentro de lembranças, mas isso é tão vivo em mim como o desejo de te escrever, que tantas vezes apareceu durante todos esses anos e tantas vezes enterrei, certo do absurdo que a ideia encerrava. Íamos longe, minha cara, disso tinha certeza.
        Um pouco antes de partir, ainda passei algumas noite revistando seu apartamento e indo nos lugares que ia sempre contigo. Era para me despedir, deixara claro. E você agiu normalmente, fazendo piadas sobre nossas inseguranças como sempre, rindo descordenadamente como eu adorava, impassível em suas convicções. A verdade é que, no fundo, eu queria que você me impedisse de ir. A burrice e a estupidez embutidas em minha decisão eram tão claras e transparentes, eu estava certo que você diria, de última hora, “odeio que você sempre queira ser buscado, não seja tão narcisista, cresça um pouco, assuma suas decisões, mas fica, por favor fica!” Você não o fez e eu me justifiquei pensando que ainda teríamos muito tempo, a vida era larga como os fins arrastados de domingo e os pôr-dos-sóis na praia.
                Mas a vida foi. Não sei se estreitou-se para você, mas é certo que minha vista ficou viciada.  Antes, quando olhava os ônibus girando no fim da tarde na cidade enorme, via uma multidão cansada e irritada, via todas as caras da desigualdade de um país que não, de uma vez por todas, não iria se conciliar, mas também via energia e promessas. Ver cidades como promessas é um luxo a qual só se dão os adolescentes.
E nós fomos o fim da adolescência, é certo.  Isso ficou mais claro alguns anos depois, quando três adolescentes me encurralaram no ponto de ônibus, pegaram minha carteira e meu celular e encheram de pontapés meu estômago. A verdade é que nem senti raiva, só medo. Em casa, enquanto rasgava a camisa de sangue colada no corpo, também senti vergonha. Chorando no chuveiro, até quis pedir desculpas. Desculpas por ser branco na maior nação negra fora da África, desculpas por ter demorado tanto a ver meus privilégios, desculpas por só agora entender porque me sentia tão impuro. E também desculpas por ter acreditado piamente que toda aquela lenga-lenga conciliadora, aquele papo de classe média branca progressista, iria me redimir. Mas, sobretudo, queria também te ligar e pedir seu perdão por ter desistido antes de sequer ter tentado, por ter bancado o personagem especial e orgulhoso da tragédia, aquele que sabe do abismo ao fim do caminho e, ao tentar pegar um atalho, cai num abismo maior.
Você veio muitas vezes depois, uma versão inventada de quem você poderia ter se tornado, certamente cada vez mais distante de quem você é hoje. Tantas vezes, até hoje, ressinto-me por não estar no mesmo abismo que você. Ainda vejo você olhando para fora da janela do ônibus, aquela cara que fazia quando estava em outro lugar, a melancolia pensativa que você se culpava por ter, já que achava injustificável. Também vejo essa melancolia dando frutos, nas reticências eloquentes de cada um dos seus gestos, no jeito sistemático pelo qual você organiza sua mesa, na consciência corajosa que só possuem aqueles que estão sós e não estão dispostos a abrir mão da empatia. Você falava muito, mas hoje estou certo que fala muito menos e observa muito mais, olhos arrastados como o pôr do sol que domava o futuro e me trazia tanta segurança.

Não sei se você lerá essa carta um dia, mas ficarei feliz de deixá-la, mesmo como gesto incompleto. Já não me restam muitos anos e percebi que só a sensação de algum sentido é capaz de me trazer paz. Por trás de toda fraude que foi minha geração, toda vida que vivi como coadjuvante de mim mesmo, toda melancolia que me encontrou em tantos domingos vindouros, eis aqui um gesto da mais pura verdade. E do mais profundo sentido. Espero que ele, de alguma forma, me redima. Não pelas palavras fáceis, pela verborragia fragmentada e desconexa, mas porque sinto que o peso de muitos anos couberam nesse gesto e ele em si encerra o melhor de todo amor que tenho por aqueles tempos em que nós dois éramos imperdoavelmente adolescentes.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Só lacunas

Posso esquecer muita coisa, não esquecerei sua voz baixa me chamando de volta, não fique tão longe, estamos aqui, o mundo está aqui e a Terra grita e agoniza toda hora, volte logo, não há nada lá fora, estou indo te buscar. E eu sempre só quis ser buscado, a mais simplista das pessoas vaidosas. Era a criança que se escondia e cronometrava o tempo que levava para darem falta dela. Sim, eu sei que isso é uma falha de personalidade, provavelmente um defeito de caráter. Mas quem não ama ser buscado?
Sinto sua falta. Percebi isso primeiro quando me peguei recitando um velho texto, apostila da sexta série ou algo assim. Não recordo claramente o conteúdo, a clareza vamos deixando com a idade que corre. Sei que era sobre um homem e a ausência da amada, contabilizada em pedaços de rotina espalhados pela casa.
Eu realmente queria ser menos adolescente. Queria ser muito original. Mas agora só posso ser verdadeiro. E ser verdadeiro é resvalar em um monte de clichês. No fim, é apenas o que somos. Vamos aos clichês: é fato que gostava mais de mim quando estava contigo. E também é fato que não habito mais nossos espaços de rotina, mas sei de cada pedaço de nós que se espalhou pelo caminho e se entranhou em mim. Posso voltar para a alma, para o desejo de rasgar a própria pele, para meu ego imenso e hipersensível.
Prefiro parar em nós dois, repousar no silêncio sereno do lugar para onde sempre podia fugir. Para as tardes longas e arrastadas, para os segundos cheios de escárnio e ingenuidade, para a certeza estúpida de permanência. Para seu cabelo enroscando nas minhas mãos desajeitadas, para a coragem de ser brega, para a confiança da qual se nutrem os atos ridículos e os gestos descontínuos. Quando me sentia velho demais para ser tão jovem, era só sua piada capaz de desmontar minhas certezas. E não sentia tanta saudade assim de me conectar com o mundo. Não havia espaços infinitesimais e intransponíveis, o desconforto absurdo de habitar meus gestos inquietos.
          Costumava dizer que vaguei demais até primeiro caber em algum lugar. E isso me lembrava outro autor, dessa vez Drummond, “tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo”, mas eu nem me dava conta das mãos, descordenadas como as de uma marionete que jamais percebeu ter um mestre. Lembrava de palavras esparsas da adolescência vertiginosa. Alguns solavancos, gargalhadas, paranóia e solidão. Seja homem, isso é pequeno demais para te quebrar. Seja homem e engula as lágrimas, seja homem e não deixe te rebaixarem. Enfrente e não procure colo. Não, não caia fundo nos cabelos dela, no corpo dela, não dependa tanto desse afeto, não procure tanto consolo. Não mergulhe nas certezas macias, no calor letárgico.
Mas e se já fui muito fundo, como todos os clichês? E se nunca aprendi a ser homem? E se agora devo voltar para uma casa que nunca habitei, para o estranhamento dos gestos desconexos de um corpo que, sendo meu, nunca pareceu me obedecer? E se nunca aprendi a engolir o choro? Porra, como sinto sua falta.            


terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Sobre excessos


                Acho que só escrevo sobre solidão. Talvez por isso, notei que não gosto de escrever senão para alguém. Sempre escolho, pois, destinatários imaginários. Essa é para você, que está debruçada próxima a janela, também ouvindo a chuva cair. Você sabe que é um clichê lamentável e raso. Você é vítima de toda pretensão da boa literatura ocidental, da excitante articulação política e da fé febril nos projetos de civilização. Você queria se despir de todo esse mosaico de excessos, mas tem medo de não achar nada. Então você volta a procurar a salvação na Igreja na qual sua fé de superfície foi lavrada: folheia alguns livros diferentes, saboreia a fantasia estética do humano complexo (tantas camadas quanto um caleidoscópio quebrado!) e se deleita com a incompletude que benze cada fiel renovado. Em seguida, fica perto da janela enquanto a chuva cai e tem vontade de escrever. Sim, escrever, porque você também é escrava demais de sua fé e, no fim, nada é tão complexo assim e a chuva traz em você a melancolia genérica que traz há tantos personagens e dias que habitam os quilogramas demais de arte e cultura pop que você consome.
                Mas, que merda, você é tão cínica quanto eu e sabe de tudo isso. Ainda assim, não consegue se livrar de sua melancolia genérica. Ela parece tão funda, tão bem gestada em sua solidão confortável, tão ingrata para não ser única! É o isolamento, você está certa. Eu vejo bem o que você me diz: você também é dúbia e não gosta tanto assim de você, mas no fundo ainda alimenta a crença secreta de que é uma boa pessoa. Ou de que será capaz de ser um dia.
                Com a chuva caindo, sua mente se enche de imagens. Sua mente não se importa que seu mundo seja seu quarto e seus livros: ela te trai com imagens de paisagens, pessoas, países e vidas do mundo todo. Vidas que você não conhece. Vidas das quais você não daria conta. A solidão daqueles que realmente tem razões para chorarem durante a chuva.
A resignação e a força das mães solteiras que trabalham em dois turnos e ainda pensam nos filhos vinte e quatro horas lhe enternece especialmente. O completo abandono dos presidiários lhe intriga. Quem chora por eles? Quem liga? Os que dormem na rua: você cruza com eles todos os dias e sabe que não faz nada. De qualquer forma, você os vê na chuva lá fora e não consegue sequer imaginar uma história de vida para eles. Como chegaram até ali? Algum dia você será capaz de fazer algo por eles? Do que servirão todos esses excessos?
Você pensa na solidão resignada desses personagens, resignada na falta de palavras e meios para dizer, na falta de voz para gritar, na falta de ouvintes para ouvir, na falta de uma educação burguesa que pudesse lhes incutir a sensação de que eles têm o direito e a necessidade de dizer: isso mesmo a toca profundamente.
            Eu queria te conhecer. Não que você exista, mas a sensação de que você também poderia estar escrevendo para mim, às vezes, me acalma. Eu não estou na rua. Minha família me ama. Eu levanto todos os dias e saio por aí: ocupo meu tempo, tento ser útil quando dá. Tenho amigos maravilhosos. Só que há um buraco grande quando a chuva cai. Sim, um buraco, já que já mandei à merda os clichês. Você não liga para eles, correto? Isso não é bem um concurso literário e bem... Você já leu até aqui um texto sobre chuva e melancolia, pode lidar com mais esse lugar-comum. E com os próximos também, porque tenho de dizer que esse buraco fica no meio do estômago e realmente acelera meus batimentos e eu não aguento mais agonia que ele gera.
                E se eu te abraçasse em frente à janela chuvosa, como nos filmes? Sinto que nada mudaria. Só outro excesso estético. Contudo, eu gosto de pessoas que fazem piadas consigo mesmo e sei que você é muito boa nisso. Preciso acreditar que daria certo nós passarmos uma tarde juntos. Você fecharia a cortina, eu esqueceria a chuva e todo esse mundo lá fora que eu nunca vejo. Também esqueceria os livros, os filmes, a televisão, a internet: os dispositivos que prometem me contar sobre a realidade, mas que mentem demais para mim. Eles me sufocam de uma empatia paralisante que não serve para nada e que acaba virando auto piedade. Nós dois não gostamos de quem somos quando sentimos auto piedade, certo?
                De qualquer forma, eu sei que eu olharia para você. Talvez eu até olvidasse que tudo isso é outro clichê, uma versão reciclada do mais barato e raso escapismo adolescente vendido em cada comédia da sessão da tarde. Você faria uma piada sobre o fato, como os roteiros dessas comédias também aprenderam a fazer. Nessa hora, eu olharia de novo para você.

Então gargalharia doentiamente e esqueceria o meu buraco no estômago, porque ele viraria apenas dor: dor biológica, a contração de algum músculo após o riso intenso. Nós até poderíamos chorar copiosamente alguma hora mais tarde e haveria carne e ossos em nossos abraços. Você teria fome e cozinharíamos juntos. Com certeza, comeríamos sem afetação, lambuzando os dedos e devorando com desespero a comida. Seríamos animalidade e corpo imperfeito, presença concreta e pesada a libertar de vez cada pretensão estéril. Despidos, encontraríamos o sexo e treparíamos até sua pele cansar-se da minha. Dormiríamos profundamente enlaçados e todas as camadas anteriormente descartadas voltariam a reconstituir-se. Só que estariam menos superficiais, curadas dos excessos de abstrações distantes: quase compactas em suas incompletudes. 

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Sobre agressividade

             Tudo veio à tona de novo quando as ruas se encheram de fúria. Não era ele um indignado, por que aquilo o assustava tanto? Naquela noite sonhou, mas não foi um sonho apenas, foi uma lembrança editada pelo delírio onírico. Ele numa festa de ano novo, o único de preto, incapaz de se comunicar, preso demais em si, revoltado por ter certeza de que ninguém ali era feliz. Mais revoltado ainda por saber que era espantosamente autoritário e arrogante que tivesse esse tipo de certeza infundada.  Queria livrar-se dela, esmagá-la, triturá-la. Então dizia para si que tinha que mudar e aceitar que as pessoas eram muito felizes, o problema era ele, um dia trataria de se encontrar. Antes, precisava transformar aquele ressentimento e depois a certeza raivosa morreria naturalmente. Seria uma pessoa muito melhor!
            Mas acordou anos depois com a certeza ainda lá, oscilando entre os extremos eu e mundo: “onde há espaços em que eu possa caber?” ou “como pode o mundo estar caminhando para o fim melancólico e merecido da desgraçada espécie humana e todos continuarem seguindo hipnotizados, como em rebanho?”. Ele condenava-se pelos dois pensamentos, ambos extremos de uma mesma misantropia a ser combatida. Contudo, havia a moral cristã que tinha aprendido bem: ela ensinava que a única agressividade deveria virar energia transformadora e ele seria uma pessoa muito melhor!
               No mais, sempre falara demais, palavras sem fim, sílabas a dar para um pau. Odiava  demais sua voz, mas gostava de sua fluência com a língua, embora muitas vezes saísse de círculos sociais com a impressão de ser o mais desagradável no universo. Nessas horas, pensava em esfarelar e ralar sua face no chão, tamanha era a raiva que sentia de si mesmo. Quando ouvia críticas, pedia desculpas, embora no fundo começasse a nutrir certa raiva pelos seus interlocutores também. É porque ele nem sempre concordava com as críticas, mas nunca as retrucava. De vez em quando, tinha delírios em que respondia de forma contundente às represálias esnobes dos outros, sobretudo àquelas superficiais e muito intolerantes. Nada disso transparecia em suas desculpas suplicantes e famintas, é claro!
                Às vezes, tinha medo de nunca ser capaz de virar uma pessoa melhor. Tinha tanto ódio e ressentimento quanto aqueles que ele tanto odiava. E tudo que ele queria era ser diferente disso. Cansava-se demais nessa luta incessante, na busca pelo avesso do outro lado do espelho. Enfim, vieram os sonhos e as lembranças com as ruas cheias de fúria, ruas nas quais ele não conseguia pisar.
                Nessa fase, tornou-se mais agressivo do que nunca em seus diálogos internos, em suas respostas atravessadas a todo tipo de afirmação que julgava descabida. Aquelas pessoas diziam defender a todos, mas ele sentia que, na verdade, algumas daquelas pessoas queriam apenas uma coisa: o extermínio dele e de todas as pessoas como ele, queriam roubar todas as razões que, nesse país, permitiam que as pessoas sorrissem às vezes. Eram como os adolescentes inseguros do Ensino Médio que, tantas vezes, esfolaram de fato a cabeça dele no chão para encontrar um sentido que nunca tiveram.
                Tudo piorou ainda mais quando começou a tentar, educada e polidamente, posicionar-se com toda sua racionalidade auto-contida. Ninguém queria isso. As pessoas queriam mesmo o esfolamento no asfalto e ele foi descobrindo mais e mais agressividade e sentimentos represados e acordar todo dia naquele ambiente parecia exigir um oxigênio que estava em falta na atmosfera nacional.
                Ele sempre fora muito competitivo, mas odiava agredir, brigar e violentar. Isso não lhe trazia prazer, o sofrimento do outro. Gostava de vencer, mas preferia que fosse vitória silenciosa: a dor do derrotado quase apagada, guardada numa escuridão respeitosa. Gostava de vencer sem que houvesse perdedores. Assim como gostava de não ser machucado, mas odiava se defender. Assim como odiava fechar as coisas em caixas de sentidos e catalogar a vida, mas era incapaz de viver sustentado apenas por conceitos soltos e vagos, mutáveis, mutantes e abertos. Assim como amava a linguagem e tudo que vinha com ela, todo o poder de imprecisão de suas desculpas que lhe redimiam sem lhe trair, de suas posições que não lhe manchavam e nem lhe entregavam, do seu gentil sexo unilateral, toda sua fluidez ambígua definidora, mas odiava as muitas fissuras que ela exibia em seu tecido semântico resplandecente.

                E dessas contradições fundamentais, dessa ruptura entre dentro e fora, fechado e aberto, casa e rua, silêncio e multidão, multidão e comunhão, multidão e caos, multidão e ressentimento, multidão e ele, um grupo e ele, segurança e ruptura, desse emaranhado de abismos sem fim, vinha sua agressividade, seu espanto mais perplexo e sua eterna claustrofobia, mas também seu amor mais desvairado pela vida. Talvez só precisasse parar de tentar fechar os abismos. Talvez bastassem tocos que servissem de pontes, mesmo que provisórias, para que seu indivíduo emergisse mais inteiro, menos fragmentado, próximo de sua plenitude. Todavia, sentia-se mais longe do que nunca da habilidade de construir pontes.