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Apenas um pouco do que escrevo. Gotas da pretensão que assombra a juventude: a maldita idade lírica, da extrema eloquência com a grande arrogância. Resta apenas desorientação.

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quarta-feira, 5 de março de 2014

Sobre palavras como grilhões

Resenha do filme “A Hora do Show” (Bamboozled, 2000, Spike Lee) escrita para Aciepe “Direitos Humanos pelo Cinema”, oferecida pelo departamento de Sociologia da UFSCAR (Texto escrito em 2012)

   Em setembro de 2012, ganhou alguma notoriedade o julgamento que o STF realizou para deliberar se a obra “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, poderia ou não - e de que forma - ser distribuída nas escolas públicas. A obra claramente faz referência aos negros com estereótipos racistas, sobretudo nos diálogos entre a boneca Emília e Tia Anastácia. Entre grupos que se esguelaram em defesa da liberdade de expressão e outros que lutaram pela completa paralisação na distribuição da obra, pairou a sombra pesada do ciclo de fogo de nossa história: o desejo de apagar a permanência silenciosa do que não se mostra se debateu contra o medo premente das consequências de se assumir a verdade óbvia de que palavras e signos culturais não são inocentes.
   O caso brasileiro guarda analogias (e muitas diferenças também) com o cenário delineado por Spike Lee em seu filme “A Hora do Show” (Bamboozled, Spike Lee, 2000), possivelmente o mais polêmico de uma filmografia já conhecida por acender ânimos. Não se pode acusar o filme de apontar soluções fáceis. Do contrário, ele enreda-nos num labirinto que só escancara a persistência do que tentamos negar: das hierarquias invisíveis que se infiltram nas hierarquias oficiais e que marcam tensões racistas entre negros e brancos até quando os atores sociais supostamente
ocupam a mesma posição no campo.
   Pierre Delacroix, nosso protagonista, não é Pierre Delacroix (DamonWayans), e sabemos, de alguma forma, que ele tem ciência disso. Sua meta é simples: emplacar, como roteirista, seu primeiro grande sucesso na TV. Defende sua grande ideia como uma sátira. Ele faria uma remontagem escrachada dos shows “black face” dos séculos XIX e XX, carregados de piadas racistas, como forma de expor o absurdo através do exagero, da hipérbole: descamar os níveis
invisíveis do preconceito por meio de suas expressões mais gritantes e concretas.
   Se Spike Lee nunca poupou ninguém e já foi dito que o filme não oferece soluções fáceis, é evidente que tudo desanda. O show é um sucesso, vários conflitos raciais que estavam em banho-maria são escancaradas e, de fato, não sobra ninguém. No roteiro, claramente há um pathos central, uma hipótese a ser provada. E, no desenrolar da trama, as evidências parecem convergir para a tese de forma desconcertante: trata-se de denunciar a forma como a mídia e a indústria do entretenimento, criada num país racialmente cindido e operada majoritariamente por brancos de classe média, transmitiu e perpetuou diversas caricaturas e estereótipos negativos sobre a população negra.
    Consciente ou não, esse mecanismo de dominação atua fortemente , no âmbito da legitimidade simbólica, para garantir a permanência do racismo e da submissão de um grupo étnico a outro.
O público pode estar rindo e os teóricos da liberdade de expressão podem até dizer que isso é o maior exemplo de que a chaga foi superada. Spike Lee mostra que não: riso também pode ser sinônimo de nervosismo, medo, desespero e, por fim (por que não?), muito ódio.
    A forma como todo esse filme de tese é conduzido, contudo, é seu grande trunfo. Sim, ele parece carregado de uma certa raiva frenética, um certo impulso demolidor desesperado. Por controverso que o ponto seja, essa estratégia argumentativa é muito adequada à temática: não se fala de tabus que causam mal - estar senão com certa agressividade. Tabus já se insinuam com sutilezas e, por isso, são tabus. No mais, é dessa forma que o diretor diz muito ao espectador. O título do filme, no original, é Bamboozled, algo como enganado. Não só estavam enganados os personagens-centrais que constroem esse conto de fadas às avessas tão somente para “manter o público rindo", como também estava enganado o espectador quando, ao longo do filme, tentou tantas vezes entender e inocentar aqueles personagens. Afinal, como poderia querer Pierre Delacroix, ele mesmo negro, propagar o racismo?
   A cena final, contudo, desfaz o engano: reunindo imagens documentais de programas, desenhos e seriados americanos que mostram o retrato estereotipado dado aos negros, o diretor nos ensina que há algo além da intencionalidade: uma espécie de caldo cultural no qual já estamos imersos, no qual todos esses estereótipos já foram gestados pela história que nos precedeu. Não que o diretor roteirista tenha interesse em inocentar. Antes, quer esbofetear a hipocrisia para lembrar que todos somos culpados.
   E se a culpa é coletiva, não se deve permitir a crença em coincidências: tia Anastácia não foi retratada como cozinheira por acaso. Se assumirmos o acaso e a omissão nas expressões simbólicas, brincamos com os signos. E é exatamente isso que não devemos fazer: os signos são perigosos, tão perigosos que podem se revoltar e liberar todas as camadas ideológicas por trás de sua suposta literariedade completa. Pacificado em sua superfície e submetido ao teste do tempo, um signo pode sugerir que já deixou uma ou outra de suas representações para trás. Que tal
sentido não lhe pertence mais. Novamente, podemos estar enganados.
   Os brinquedos de teor preconceituoso que se acumulam na sala de Pierre Delacroix, os quais ele tenta desesperadamente destruir no final, talvez sejam o melhor exemplo desse dizer que se espalha em silêncio, que não se apaga, que não se quebra. Posto dessa forma, parece que o diretor não enxerga saída. Novamente, tal análise é injusta. O filme também é uma denúncia e quem denuncia acredita em soluções e não desistiu.
  Talvez Spike Lee gostasse de saber do julgamento sobre a obra de Monteiro Lobato que está ocorrendo no STF. Não se trata de vedar o contato com a representação, porque isso seria hipocrisia. Ela já foi gestada e diz da nossa história. Trata-se de garantir (sobretudo na infância, já que o público-alvo das obras de Lobato são as crianças) que esse contato seja feito de forma adequada, lembrando o significado secreto que pode estar incutido num símbolo aparentemente ingênuo.
   É impossível esquecer a lição que a mãe do protagonista lhe diz com a voz embargada, em conversa pelo telefone, já na segunda metade do filme: “Um macaquinho será sempre um macaquinho (...) Estou profundamente desapontada com você”. Em tempos de humor politicamente incorreto, em que rir do diferente parece expiar nossa culpa, o filme parece incomodamente urgente. Porque nunca foi tão verdade que uma palavra também pode ser um grilhão.