Novamente, senti que precisava escrever para
você. Como todo o desejo que se constrói durante anos, esse também resvalou
para todos os aspectos da realidade. Não tenho ideia de como anda sua vida
hoje. Não sei se ainda emenda diálogos com letras musicais, nem se toma apenas
leite desnatado. Na verdade, confesso que, durante muito tempo, gastava algumas
horas no exercício de imaginar como você poderia estar. Isso me lembra de você
dizendo que eu estava demorando demais para perder alguns hábitos. E é claro
que você estava certa. Posso dizer, ao menos, que mudei. De qualquer forma, a
memória prega peças e é inevitável que o passado vire desejo e o desejo se
esconda numa realidade adulterada.
Perdoe-me, mas ainda gosto de lembrar daqueles
tempos, tão cheios de ingenuidade que era mais do que óbvio que não poderiam
durar. Sinto que os vivi com a consciência dos personagens de tragédia, tão
cegos quanto sensíveis à fatalidade de seus próprios destinos. Brasil-China,
nossa geração indo para algum lugar, eu estava onde queria estar pela primeira
vez na vida, a multidão de pecados subitamente esquecida pelo hino da
conciliação. Você sentada ao meu lado no ônibus, a cidade imunda lá fora, a
alegria dos sobreviventes em cada piada de mau gosto sobre nossas fraquezas.
E aquela viagem para a praia, então?
Bebendo o dia inteiro enquanto o sol se movia no céu, você zombando de minhas
suposições apocalípticas, porque afinal aquilo nunca poderia acontecer comigo
nem em nosso país, as coisas estavam mudando e
nada seria como antes. Jamais. Quando o sol descia ao fim da tarde,
cerveja entupindo nossos poros, corpos inconcebivelmente quentes, o céu tingido
de laranja estanque e o mundo entrando naquele tempo que demora e parece ser o
mesmo de sempre, lembro claramente de resgatar uma memória da infância. Aquela
memória de quando ia para a fazenda com meus pais e voltava só no fim da tarde,
sozinho no banco de trás do carro, olhando desolado o laranja infiel do céu e
sentindo-me oco. O céu prometia demais, mas a vida teria de ser imensa para
tantas promessas. Não me sentia pronto para um futuro tão largo, mas fingia não
me importar: tinha tempo. E daí chegava
em casa, minha mãe me servia a sopa que
detestava e eu me deitava de barriga na cama e assistia aos horrorosos
programas dominicais, meu pai embriagado roncando no sofá do lado: e tudo cabia
bem nesses pequenos gestos banais.
Sim, já disse que lembranças não são
confiáveis, tão menos lembranças dentro de lembranças, mas isso é tão vivo em mim
como o desejo de te escrever, que tantas vezes apareceu durante todos esses
anos e tantas vezes enterrei, certo do absurdo que a ideia encerrava. Íamos
longe, minha cara, disso tinha certeza.
Um
pouco antes de partir, ainda passei algumas noite revistando seu apartamento e
indo nos lugares que ia sempre contigo. Era para me despedir, deixara claro. E
você agiu normalmente, fazendo piadas sobre nossas inseguranças como sempre,
rindo descordenadamente como eu adorava, impassível em suas convicções. A verdade
é que, no fundo, eu queria que você me impedisse de ir. A burrice e a estupidez
embutidas em minha decisão eram tão claras e transparentes, eu estava certo que
você diria, de última hora, “odeio que você sempre queira ser buscado, não seja
tão narcisista, cresça um pouco, assuma suas decisões, mas fica, por favor
fica!” Você não o fez e eu me justifiquei pensando que ainda teríamos muito
tempo, a vida era larga como os fins arrastados de domingo e os pôr-dos-sóis na
praia.
Mas
a vida foi. Não sei se estreitou-se para você, mas é certo que minha vista
ficou viciada. Antes, quando olhava os ônibus girando no fim da tarde na cidade enorme, via uma multidão cansada e
irritada, via todas as caras da desigualdade de um país que não, de uma vez por
todas, não iria se conciliar, mas também via energia e promessas. Ver cidades
como promessas é um luxo a qual só se dão os adolescentes.
E nós fomos o fim da adolescência, é
certo. Isso ficou mais claro alguns anos
depois, quando três adolescentes me encurralaram no ponto de ônibus, pegaram
minha carteira e meu celular e encheram de pontapés meu estômago. A verdade é
que nem senti raiva, só medo. Em casa, enquanto rasgava a camisa de sangue
colada no corpo, também senti vergonha. Chorando no chuveiro, até quis pedir
desculpas. Desculpas por ser branco na maior nação negra fora da África,
desculpas por ter demorado tanto a ver meus privilégios, desculpas por só agora
entender porque me sentia tão impuro. E também desculpas por ter acreditado
piamente que toda aquela lenga-lenga conciliadora, aquele papo de classe média
branca progressista, iria me redimir. Mas, sobretudo, queria também te ligar e
pedir seu perdão por ter desistido antes de sequer ter tentado, por ter bancado
o personagem especial e orgulhoso da tragédia, aquele que sabe do abismo ao fim
do caminho e, ao tentar pegar um atalho, cai num abismo maior.
Você veio muitas vezes depois, uma
versão inventada de quem você poderia ter se tornado, certamente cada vez mais
distante de quem você é hoje. Tantas vezes, até hoje, ressinto-me por não estar
no mesmo abismo que você. Ainda vejo você olhando para fora da janela do
ônibus, aquela cara que fazia quando estava em outro lugar, a melancolia
pensativa que você se culpava por ter, já que achava injustificável. Também
vejo essa melancolia dando frutos, nas reticências eloquentes de cada um dos
seus gestos, no jeito sistemático pelo qual você organiza sua mesa, na
consciência corajosa que só possuem aqueles que estão sós e não estão dispostos
a abrir mão da empatia. Você falava muito, mas hoje estou certo que fala muito
menos e observa muito mais, olhos arrastados como o pôr do sol que domava o
futuro e me trazia tanta segurança.
Não sei se você lerá essa carta um
dia, mas ficarei feliz de deixá-la, mesmo como gesto incompleto. Já não me
restam muitos anos e percebi que só a sensação de algum sentido é capaz de me
trazer paz. Por trás de toda fraude que foi minha geração, toda vida que vivi
como coadjuvante de mim mesmo, toda melancolia que me encontrou em tantos domingos
vindouros, eis aqui um gesto da mais pura verdade. E do mais profundo sentido.
Espero que ele, de alguma forma, me redima. Não pelas palavras fáceis, pela
verborragia fragmentada e desconexa, mas porque sinto que o peso de muitos
anos couberam nesse gesto e ele em si encerra o melhor de todo amor que tenho
por aqueles tempos em que nós dois éramos imperdoavelmente adolescentes.