Alguma utilidade?

Apenas um pouco do que escrevo. Gotas da pretensão que assombra a juventude: a maldita idade lírica, da extrema eloquência com a grande arrogância. Resta apenas desorientação.

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quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Presságios

“Se você vier me perguntar por onde andei / No tempo em que você sonhava/ De olhos abertos, lhe direi: / Amigo, eu me desesperava”.
(A Palo Seco – Belchior)
                
             O primeiro presságio estava nos olhos do pai. Ela soube, sem entender muito bem como e por que, que o estava perdendo. Ela, “a menina dourada, a pequena heroína, seu maior presente”, de repente não significava tanto assim. Ela pressentiu porque não lhe deram outra palavra, apenas lhe disseram que garotas tinham intuição. Mas, na verdade, ela sabia. Sabia que crescia e que ele temeu não a ter mais. Ela bem poderia ter entendido se ele tivesse explicado, dito com calma, deixado claro que a posse egoísta era parte do seu amor, mas não todo ele e que ele aprenderia a lidar com a adolescência. Ele não disse palavra, apenas se foi, distante, sem colo, sem abraço, aquele olhar duro e petrificado de quem procurava nela um passado que jamais voltaria.
           Ela se resignou, mimetizava rápido qualquer papel que lhe dessem. O presságio, contudo, inaugurou uma nova era, a partir da qual muitos outros viriam: ela era a garota que sempre sabia o que não lhe diziam, mas entendia bem os perigos de verbalizar. Afinal, ninguém poderia suspeitar que ela tinha presságios. Não que ela os considerasse presságios, porque havia toneladas de sinais objetivos: eles estavam sempre gravados nos olhos alheios, na posição das coisas, na maquiagem, nas expressões faciais, no que lhe mostravam sem dizer, no que lhe sugeriam sem explicar, no silêncio que sustentava ordens invisíveis.
Todavia, ela também compreendia que presságios eram bruxaria, trevas, irracionalismo, obscurantismo e ela não queria ser queimada. Não queria a distância de novo, queria o afeto que davam à menina, mas também queria ser a mulher que escolhesse ser. A adolescência, entretanto, veio para tornar essa missão mais difícil. Os cabelos presos, as saias longas, os óculos fundos, o arquétipo-modelo. Estudiosa, gentil, sorridente com todos, coadjuvante perfeita: teve o presságio de que esse era o melhor caminho a seguir.
Ela assistiu paciente suas amigas trocarem inúmeras vezes de namorado, mas não sentiu inveja. Sim, teve curiosidade, vontade, e, muitas vezes, cansou-se de sua solidão. Contudo, amava seu rico universo interior, a empatia que lhe proporcionava tantas relações, os livros que lhe ofereciam tanto conforto, os planos de fuga que lhe davam tanta motivação.
Ainda assim, eventualmente veio o primeiro namorado. Ele aproximou-se devagar, com delicadeza e insegurança. Como ela, tímido e gentil. E ela se sentiu, pela primeira vez em anos, menos sozinha. Com o tempo e a intimidade, entretanto, a natureza da relação foi mudando drasticamente. Os presságios voltaram quando ele passou a questioná-la sobre todos os passos, quando a gentileza e a timidez tornaram-se narcisismo voluntarista. Ela, novamente, sentia-se infinitamente cansada: descobriu que ainda estava sozinha, mas já não era mais livre. Fora um dia? A vida reduzida a agradar um outro que jamais sorria, uma corrida sem fim. Então o desejo nela morreu, mas ela não sabia como falar sobre isso. Ninguém jamais havia lhe contado sobre desejos, ela era apenas pressentimento e intuição. Seguiram-se meses de sexo unilateral, não verbal e cada vez mais agressivo.
Ela não precisou fazer o teste para saber que estava grávida e nem precisou pressentir para entender que jamais veria o namorado de novo.  Que perderia o pai para sempre. Que seu útero a serviço da sociedade era também sua letra escarlate, uma vergonha pela qual sua mãe também seria responsabilizada.  Ficou o pressentimento de que ela deveria ter esse bebe, porque isso também estava gravado na linguagem corporal da diretora do colégio no dia em que conversaram: cabeça levemente inclinada, olhar perdido num misto entre pena e condescendência, sorriso falsamente acolhedor e palavras de ordem. “Sexo implica responsabilidade, você ainda tem muita vida pela frente, agora deve assumir as consequências de seus atos”.
Com um certo sentido de dignidade, ela assumiu. Foi assunto da cidade por meses, mas seguiu sem olhar para o lado, sua letra escarlate cada vez mais exposta na barriga que crescia, nos seios que inchavam, na solidão profunda da maternidade. Solidão que se pressente, mas também não se nomeia, porque não se nomeia aquilo sobre o que não se fala. No quarto mês, sofreu um aborto espontâneo. Repreendeu-se: abortista, ela deveria ter pressentido antes que havia algo errado, a marca da desgraça nos olhos sem brilho do pai, no namorado desaparecido, no sorriso amarelo da diretora da escola, no desespero profundo da respiração carregada da mãe.
Também por isso, não questionou as amigas que dela se afastaram e jamais ofereceram qualquer tipo de suporte durante toda essa prova.  Compreendia que elas também tinham seus presságios e neles a amiga grávida só poderia ser um mau agouro. No fundo, sentia-se culpada, mesmo sabendo ter cumprido exemplarmente o papel que desenharam para ela. Voltou para a escola apenas para descobrir que nenhuma letra escarlate é apagada durante a adolescência. Seguiu mais sozinha, cada vez mais determinada. Tentou tanto não ser queimada, mas acabou bruxa do mesmo jeito. Após tantos anos de presságios, devia ter aprendido melhor com os gregos: não se dribla um destino que já lhe foi escrito.
Não obstante, ela insistiu. Determinada a cavar seu espaço no mundo sozinha, estudou febrilmente, movida por um misto de ressentimento e esperança. E, pela primeira vez em anos, não pressentiu, apenas soube: dali iria sair. A primeira da família na universidade, até hoje chora ao lembrar do olhar úmido do pai quando soube, do abraço apertado da mãe, de como, por uma noite, pôde ser a “Geni que salvou a cidade”. Não esperou amanhecer, para que não houvesse tempo de a transformarem em a “Geni boa de cuspir”: mandou-se dali para não mais voltar.
Na universidade, nunca mais teve presságios. Encontrou as palavras exatas para descrever a medida de suas limitações e grandezas, a válvula perfeita para canalizar sua revolta e as companheiras certas para liberar toda sua potencialidade. Assim, pela segunda vez desde a infância, sentiu-se menos cansada, a alma menos retorcida.
Como era das mais inteligentes, entendeu muito rápido que sua geração fora enganada. Que não havia como o país se reconciliar, porque não havia país nem Nação. Ela entendeu muito antes, porque viu claramente o delírio de misoginia que tomava conta do debate público. Disseram-lhe que estava exagerando, sendo irracional, que aquilo era apenas um presságio. Que ela estava agindo como a presidenta, que também era bruxa, irracional, descontrolada e tinha apenas presságios.
        Infelizmente, ela estava certa. Não havia potência e nem empregos para diplomadas, muito menos para ela: negra e periférica. Ela, novamente, seguiu sem olhar para o lado. Agora sabia quem era, o quanto podia e não iria desistir da luta. E bateu em tantas portas e teve tanta humildade e energia e mostrou tanta vontade (ninguém jamais imaginaria o quão fundo era seu cansaço) que conseguiu uma oportunidade. Mas o diretor da escola passou a assediá-la logo no primeiro mês e ela percebeu que não tardaria a perder aquele emprego. Ainda assim, jamais cedeu: não seria capaz de carregar outra letra escarlate, a primeira ainda queimava em sua barriga certas noites. Sem emprego, logo faltou dinheiro para o aluguel.
           E ela, que já passara por tanto e jamais quebrara, começou a achar que jamais se recuperaria de seu cansaço nessa vida. Talvez fosse melhor morrer como bruxa e encarar a danação eterna que sempre fora seu destino. Estava tão à beira do abismo que a vertigem era irresistível demais, era silêncio, acolhimento e liberdade. Passou o batom vermelho forte e se maquiou com gravidade. Preparou as pílulas e o copo de água, posicionando-os cuidadosamente na cabeceira. Deitou-se na cama, corpo nu estirado em oferenda, e inspirou fundo para tomar coragem. Mas então o telefone tocou e ela soube que devia atender. Era sua mãe, estava preocupada porque ela não ligava há dias, queria saber como ela estava, como era o emprego, se estava se alimentando direito.

         Ela respondeu à mãe impassivelmente, como se tudo estivesse normal. Por dentro, contudo, algo se consertou. Com a força de vontade dos que já contemplaram o abismo bem de perto, ela se vestiu, limpou a maquiagem e o batom: novamente, era livre. Seguiria com o plano: seria quem ela escolhesse ser. Não precisava pressentir para saber que ganharia essa. Porque não perdera até agora e o destino ela já conhecia muito bem: era masculino, de ego inflado, morrendo de medo de mulher. Rumou à rodoviária e comprou uma passagem para sua cidade-natal. Iria visitar a mãe para lhe dar um abraço bem forte e repousar a alma.