Alguma utilidade?

Apenas um pouco do que escrevo. Gotas da pretensão que assombra a juventude: a maldita idade lírica, da extrema eloquência com a grande arrogância. Resta apenas desorientação.

Pesquisar este blog

domingo, 10 de novembro de 2013

Para os grandes amigos do passado

                 Como andam as coisas, grande velho amigo ou amiga do “passado de sempre”? Digo “passado de sempre” porque não acredito em amigos do passado. Como se o passado fosse sempre algo concluso e “para trás”. O passado levou ao presente, assim como amigos do passado fizeram-me como sou no presente. Sendo assim, é melhor deslocar os amigos no tempo e, para resolver todo esse problema, prefiro colocar os amigos numa esfera atemporal. Acima da pesada estrada mundana com relógios a toda esquina, a rotina controlada com a cirúrgica precisão dos diagnósticos fatalistas...
                 Estou escrevendo-lhe, porque sei claramente que estou em débito com você. Costumávamos nos ajudar tanto e, ultimamente, ando meio sumido. Mas obviamente não é nada com você: é só a correria da vida que nos deixa sem tempo para o que importa. E atordoado com nossas escolhas, confusos e hesitantes de seguir em frente. Mas sempre seguimos. Daí, quando respiramos, quando organizamos momentaneamente o quebra-cabeça da memória e encontramos as peças que realmente significam algo, é momento de encaixá-las. E se daqui a alguns anos todas se desencaixarem de novo, espero ter novamente esses momentos, para nunca perder de vista as peças raras.
                E não digo tudo isso apenas por não ter respondido (ou não ter respondido devidamente) a seus convites. Para legislar em causa própria, posso dizer que, pelo menos, acompanho seu trabalho à distância. Ou nas conversas rápidas que me fazem sentir que tudo é como antes. Mesmo não sendo.
                Da minha parte, garanto que ainda te vejo como antes: o indivíduo em processo da infância e da adolescência, com tanto medo da “sordidez do mundo adulto”. E depois também o adulto combativo e sonhador, que ainda se sente uma criança (não sonhadora, mas assustada). Rótulos e concessões, escolhas fora do plano: tudo isso faz parecer que algo se perdeu. Mas, se você organizar certinho as peças, verá o quão grandioso é o quebra-cabeça de sua vida. Não o jogue fora: remende-o, se necessário. Procure peças sobre a cama ou nos armários esquecidos do quarto da infância. Tente mudar algumas de lugar e verá que a imagem formada parece menos caótica. E entenderá que está tudo ali dentro, mesmo que, ao mesmo tempo, tudo está lá fora. Essa é a brincadeira da vida, desses sentidos que se constroem e reconstroem e nunca findam.
                Eu sei que não é fácil. Tantas vezes, queria saber organizar melhor, ter algum tipo de “porta quebra-cabeças” para facilitar o transporte de tantos pedaços. Queria me livrar da sensação de lacuna permanente, mas assumir que isso é possível é destruir minha própria metáfora. Se a vida é, para todo sempre, um quebra-cabeça incompleto, ela só existe entre lacunas. Às vezes, sonho com reencontros em mesas de bares com aquele grande amigo esquecido do passado. Ou com aquela paixão flutuante da adolescência, tão intocável em sua pureza não consumada. Sonho com achar peças em lugares que nunca estive. Ou em me cegar com o brilho daquelas que, desde sempre, foram opacas.
                E aí me sinto como o estúpido adolescente que viu filmes e leu livros demais. Covarde, preferi a realidade inventada às lacunas do real. Lunático, projetei a luta pela igualdade do sofá de minha sala de estar. Insensato, acreditei demais num fio de sentido que passasse linearmente sobre todos os fragmentos, unindo-os fortemente, enrijecendo o perigoso mosaico do viver e tapando todos os buracos. Novo paradoxo infeliz que destrói as porcas metáforas que mal construí: não há retas ou linhas que possam cobrir, sozinhas e simultaneamente, toda essa área disforme de existência pulsante. A não ser que unamos uma linha a outras e dobremos todas em tantas partes...
                E se faço esse texto sobre a incapacidade de ordenar a memória, tampouco é porque desisti da tarefa. Como poderia ter desistido se esse próprio gesto, o de escrever, é o constante esforço de conferir sentido, de resgatar farelos, de passar a linha na agulha e debater com força a ponta da agulha sobre duras peças que apenas a entortarão. Sim, escrever é o mais irracional dos gestos. E eu, adepto da poesia-pop, de bobagens lírico-sentimentais (seria, como sugeriu Chico Buarque, culpa da herança lusitana?), as quais opõem a racionalidade técnica ao exercício estético, só consigo achar que escrever também é o mais humano dos gestos. Só é humano para mim o que é irracional e, sendo assim, nada pode ser mais humano do que continuar vivendo e procurando sentido, mesmo com a plena consciência da impossibilidade de encontrá-lo.
                Não me demorarei mais, grande amigo do passado. Você também é, para mim, outro paradoxo: você é a “lacuna preenchida” da minha alma, aquele que dói demais quando não há relógios por perto. Mas não quero preocupa-lo ou desanimá-lo. Fique tranquilo, eu estou bem.
                Se tudo isso pareceu pessimista demais, é só uma questão de viés: vejo beleza na marcha atarantada que fazemos sabe-se-lá-para-onde. Vejo beleza em tantas peças pelo infinito caminho esburacado. Só me preocupo em não perder de vista o quarto da infância, os lugares insuspeitos e as pessoas incríveis que encontrei em cantos e vielas escondidas. Pois é bem verdade que, se não tomarmos cuidado, podemos elipsar todos esses referenciais. Até porque é tão flexível e mutável esse material de que são feitas as peças da memória. Ele é fabricado em algum canto escondido e inacessível onde se tocam nossa mente e nossa consciência. E não é confiável esse espaço onde ambas tem autonomia, assim como não é confiável qualquer gesto de percepção que aí se constrói.
                 Assim, as lembranças podem se confundir com lendas, as pegadas correm o risco de se apagarem tão logo tiramos o pé do chão e a própria história nunca escrita de nós talvez desista de gravar-se na eternidade de nós mesmos. Aí perdemos a vontade até de participar da marcha coletiva pela busca do sentido sempre fugidio. Esse é meu maior temor e, por temer, escrevo para você. Alerto com urgência, passo um fio errante e emaranhado sobre espaços do passado, na esperança de que a insensatez desse gesto mantenha-nos apaixonados por essa magnífica aventura de errantes.

               

                

domingo, 11 de agosto de 2013

Sobre amantes e tango

Para Carol S.

Por que pensar sobre amantes e tango? Todos intuem a batida comparação, mas olhar atento para as semelhanças entre o tango e os amantes ensina sobre existência e memória. Dos amantes e do tango, sabe-se da fúria. A fúria esguia que apossa os corpos e derrete o espaço, engolido na coreografia frenética do desespero. Dos amantes e do tango, vê-se que passam apressados pelo palco, como também não olham espectadores. Donos do mundo ao redor, pisam com força em solo desconhecido, agitam-se freneticamente nesse local de tudo e nada que se chama“nós”.
Pois no tango, a dança é sempre a dança da última vez e, portanto, o domínio do espaço e dos corpos é tão pleno quanto irresponsável, pois espaço e corpos se entregam sem pensar para a ciranda apaixonante e demolidora. Também assim são os amantes, desde que o mundo decidiu nomear assim todas as pessoas que passam apressadas e inteiras, tão ávidas quanto entediadas.
Os amantes zombam de tudo porque vivem na dança da ultima vez, com um diferencial: a crença na dança de tempo infinito. Se sentem que durará para sempre essa entrega irresponsável, se apostam a alma na leveza dos corpos, nos pesos que se dividem, então podem viver um pouco a sensação de que tem um mundo só deles. O mundo dos outros está ali, apesar do mundo deles. Eles já leram muito sobre isso, sabem que repetem o padrão de todos os amantes, podem odiar sentimentalismo, mas não adianta: todos os amantes dançarão tango mais cedo ou mais tarde, viverão como se sob a crença de que algumas ingenuidades podem ser infinitas, de “quem sabe ao menos nossa inocência não será castigada e nossa felicidade sairá impune?”
Mas nenhuma dança tem tempo infinito, embora toda dança tenha dois, três ou múltiplos tempos. Há o tempo dos dançarinos, o tempo da música, o tempo íntimo de cada um, o tempo do espaço que abriga o movimento, o tempo da memória que escolhe os flashes únicos que merecem ser guardados. Talvez alguns desses tempos sejam infinitos, mas, de forma estrita, uma hora a cortina se fecha e o espetáculo tem fim. Isso não necessariamente significa o fim dos amantes. Há muitas saídas, algumas boas, algumas ruins, outras péssimas.
                Espera-se dos amantes que não se tornem dançarinos de tango para turistas, aqueles que emulam um passado sem legitimidade, usam uma tradição espontânea de forma artificial e assim desconstroem a memória, criam lembranças outras, fabricam histórias que nunca foram. Não se deve culpá-los, porque geralmente precisam ficar presos num passado fantasma para encontrar sentido no presente. Contudo, são infelizes.
A melhor saída de palco, o melhor fim de dança para os amantes que dançam tango é aquele no qual eles olham para o público e agradecem. Assim, descobrem que o mundo dos outros existe, apesar do seu. Daí, podem conseguir até um bom lugar na platéia para assistirem a próxima dança. De repente, se o amor for grande o suficiente, se derem alguma sorte e se tiverem realmente boa vontade, conseguem se sentar lado a lado. Dão lugar para a dança de outros amantes, guardam todo o espaço que desconstruíram e roubaram durante a própria dança dentro da memória. Lado a lado, podem voltar para a casa, para talvez um longo tempo que os espera juntos, para talvez esse mundo prismático de todos, de cada um deles, dos outros, de nós e de vocês. Pois os amantes da vida toda, aqueles que sobreviverão ao teste dos anos que passam, do lamento nostálgico da vida vivida, são aqueles capazes de dançar tango sozinhos no seu quarto escuro depois de um dia sujo de rotina gasta.


sábado, 20 de abril de 2013

Sobre a temperatura humana


               Você já pensou sobre corpos que se abraçam na madrugada improvável? Andei pensando muito sobre madrugadas improváveis, caro amigo, bem como sobre a alta probabilidade dessas horas escuras, impassíveis e quentes. Quentes na temperatura humana. Digo temperatura, pois não gosto da ideia de calor humano. O calor sequer é uma propriedade dos corpos, tem essência transitória. Na temperatura própria do humano (e isso nem é de medida objetiva, gosto de pensar que somos de temperatura irmã dos febris e hipotérmicos também), dois corpos não trocam calor, apenas colocam suas temperaturas lado-a-lado, dividem aquilo que é propriedade mais intrínseca do atual estado de seus descaminhos.                                     
         Essa ideia, sei bem o que pensas amigo, pode soar mais solitária. A mim, também soa mais permanente, revestida pelo silêncio de eternidades que só o tem as madrugadas: ainda só, aproximamos infinitesimalmente nossa temperatura da do corpo semelhante e, com essa aproximação, não destruímos a integridade dele (nem a integridade da dor, nem a da solidão, nem a da beleza), mas chegamos o mais perto possível de entender o alheio sem invadi-lo, como se fosse o genuíno ato de solidariedade. Aproximamos tanto que ficamos a um sopro de tocar o espaço de vertigem ao lado, mas nunca o fazemos. Ainda bem, mal damos conta da nossa vertigem. Bem sabemos como essa distância irrisória dói, mas é essencial.
              
           Vemos o abismo de solidão que nos cerca, mas acenamos para o semelhante do outro lado dele. Talvez combinemos um horário na mesma madrugada para vermos a mesma lua e lembrarmos que sentimos o mesmo abandono e aconchego quando olhamos o céu vazio e nos damos conta de que nem a temperatura de todos os humanos somados aumentaria sequer um grau centigrado do frio galáctico do universo infinito. Sobre isso, velho amigo, andei pensando que no espaço humano, quase inexistente, que se coloca entre as temperaturas de dois corpos lado-a-lado, algum atrito talvez acenda uma fogueira. E fogueiras, em noites serenas de almas silenciosas, têm o poder de trazer paz. Essa bela imagem, quase soprada aos meus ouvidos numa madrugada improvável, deu-me um esboço da beleza da nossa condição: quase ouvi a madrugada, peguei um sussurro espaçado ao redor. Lembrei que, muitas vezes, é fácil ser feliz ao lado do abismo: basta parar de olhar para baixo e olhar para frente.

quinta-feira, 28 de março de 2013

Carta à irmã


            Minha pequena, escrevo para relembrar da última vez em que você me fez feliz. Achei que seria uma forma singela de agradecer e talvez lhe ajudar a lembrar da última vez em que você foi feliz.  A vida vai correndo mais manca, teimosa e esbaforida e esse é o tipo de coisa que as vidas esbaforidas acabam esquecendo, pois demandam tempo demais apenas recuperando o fôlego.
            A última vez em que você me fez feliz, eu tinha três e tantos anos e havia um bebê de olhos grandes na cama de meus pais. Sim, lembro claramente dos olhos, sempre esbugalhados e estrábicos: fundos e inquietos demais, assim como devem ser os olhos das pessoas cuja alma não cabe no corpo. Lembro do ciúme, da consciência de que agora a atenção dos velhos seria triplamente dividida. Mas lembro muito da felicidade: uma felicidade egoísta, é fato, que advinha sobretudo de eu ter visto, de relance em seus olhos ternos, a mesma inadequação solitária que me consumiria toda a juventude vindoura. Ali já éramos então irmãos consanguíneos, mas também irmãos de invisibilidade: seríamos os únicos a reconhecer a dor mútua em ambiente lotados.
            A última vez em que você me fez feliz, eu devia ter cinco e tantos anos e vi seus primeiros passos inseguros. Eles eram cambaleantes e determinados, talvez como o de todas as outras crianças. Contudo, nunca tinha visto uma criança andar pela primeira vez antes. De qualquer forma, eles me lembraram que a idéia de ficar de pé e ir adiante não era tão óbvia e natural como parece para os adultos andantes. Ir adiante era meio trôpego e assustador também. E você andava um pouco e sentava e fui feliz por ver que você não tinha vergonha de parar para tomar coragem: eu também sempre precisava de paradas, mas as fazia escondido, porque vivia cercado por pessoas que preferiam cair no chão a parar. E eu me sentia tão pouco destemido por não conseguir ser como elas. Você me mostrou que talvez não havia problema em ser como nós.
            A última vez em que você me fez feliz, eu devia ter uns doze anos e lia para você. Você provavelmente nem prestava atenção e achava meio chato. Só que a fase não era boa para mim e você ouvia por horas, porque sabia que isso me deixava melhor, fazia-me sentir útil. E a sensação de que você estava disposta a fazer algo que te entediava apenas para me deixar bem me fazia imensamente feliz. Você era tão criança ainda e era tão gentil da sua parte e eu sentia tanta hostilidade naquele tempo que a pequena gentileza me fazia derreter.
            A última vez em que você me fez feliz, eu partia para outra cidade, grande e distante. E tinha medo. Você tirou seu broche preferido da gaveta e me deu para levar comigo. E em todas as noites solitárias e frias demais, ou simplesmente tristes e angustiantes (daquelas em que a escuridão se torna palpável e subtrai disposição física como uma esteira desregulada), eu olhava para ele e me sentia um pouco mais em casa. Era apenas um pedaço pequeno de ingenuidade e consideração e me acalmava tanto. E eu fiquei feliz por entender o quão poderosos podem ser os pedaços pequenos de ingenuidade e consideração. Foi você quem me ensinou isso.
            A última vez em que você me fez feliz, eu voltava cabisbaixo e derrotado da cidade grande e distante e você me ajudou a carregar a mala mais pesada que você. Depois, deu-me um abraço e disse que ainda podia me amar mesmo eu desistindo às vezes. Daí eu lembrei que isso fazia sentido, já que você não teve vergonha de sentar no chão e parar um pouco durante seus primeiros passos. E porque você também tinha os olhos esbugalhados da inadequação. E no fim, entendia profundamente essa claustrofobia de espaços extensos e solitários.
            Na verdade, há tantas lembranças da última vez em que você me fez feliz que me dei conta de que você vem me fazendo feliz a vida toda. Só por estar aí, com seus planos, idéias, sonhos, lembrando a melhor versão daquelas pessoas com humanidade em excesso, aflorada demais, sempre expostas e queimando. Ao mesmo tempo, com tanto medo dessa humanidade ainda ser insuficiente no fim das contas. Dela faltar com a disposição necessária para trazer alguma felicidade. Ou dela ser espancada com tanta agressividade circundante. Entendo tudo isso, minha pequena, mas ela também traz recompensas para os que insistem nela. Na verdade, não insistem, estão condenados, porque isso tem mais a ver com carma e olhos. Não esqueça dos olhos.
            Então, é justo esse texto existir para registrar que o excesso de humanidade me fez tantas vezes feliz. Quem sabe outros sofram da mesma doença que você e entendam que ela também é uma cura. Quem sabe, quanta presunção da minha parte, ele ajude você também a achar parte da sua cura. Depois, você pode engarrafá-la em broches-pedaços-de-ingenuidade e distribui-la por aí também. Assim, deixo meu agradecimento profundo. E meu mais sincero testemunho de afeto, pequena.


domingo, 17 de fevereiro de 2013

Brasília é uma festa (de debutantes)


       Tinha oito anos quando ouvi meu pai sentenciar pela primeira vez: “Brasília é uma festa.” Corriam imagens do desfile de sete de setembro pela televisão e eu, obviamente, achei que aquelas palavras referiam-se unicamente à celebração cívica. Até então, também pouco sabia da história da cidade, de sua construção suada no coração geográfico do país, estimulada por devaneios febris e otimistas de concreto armado.
            Veja bem, caro leitor, meu pai sempre falava de Brasília. Parecia acreditar nela, meio daquela forma que o interlocutor de Don Vitor Corleone diz acreditar na América, no início da parte um de “O Poderoso Chefão”. Meu pai mudara-se para lá com dezessete anos e pouco dinheiro no bolso. Voltou para cá com menos ainda, mas com um diploma e um paletó de trabalhador honesto. Se minha Brasília, aquela na qual nunca pisei, sobrevivia em minha mente apenas a partir da antítese “lá” e “cá”, meu pai era o agente que a promovia, o esforço constante em agregar os extremos da contradição.
            Para além de meu pai, Brasília sempre me chegava a partir de epítetos jornalísticos ou históricos. Ora “Brasília era o futuro” ou “A crença otimista num Brasil que vai para frente”, ora era também “Um pesadelo de cimento”, “Uma loucura inconseqüente” e “A cidade da corrupção, com um dos mais altos custos de vida do país.”
            Também adolesci e passei a sonhar com o longe. Por conseguinte, também sonhei com Brasília e criei minha própria visão lírica da urbe fantástica. Brasília tinha de ser como “Tropicália” de fato, com todas as nossas contradições de modernidade e atraso. E ouvia sobre Niemeyer, Lúcio Costa, curvas de concreto e como elas eram a síntese perfeita entre peso e leveza, suavidade e opressão.
Não demorou também para que eu projetasse em Brasília um pouco do ódio que todo jovem tem do pai. Comecei a enxergar naquele projeto de cidade um ridículo enorme, veja bem, aquele nosso desejo de parecer civilizado segundo padrões ocidentais. Sim, a marcha civilizatória enquanto pretensão risível também era a Brasília de minha adolescência.
O tempo me faria relevar esse aspecto: entendi que não podia julgar os protagonistas daquele passado recente com os valores da minha geração. Só os homens da década de cinqüenta entendem o espírito daqueles anos frenéticos, cujo maior fruto é a “cidade dos chapadões”, esse elefante branco selvagem que é, ao mesmo tempo, elefante de circo.
            Nem tudo isso me fez entender as palavras de meu pai. Fui entendê-las apenas recentemente, quando assistia aos desfiles das escolas de samba pela televisão, com todas aquelas alegorias e sonhos antigos encarnados num devaneio que finda em quatro dias. Minha irmã exclamou: “O Rio é uma festa.” Pronto, foi nesse infinitesimal momento, prezado leitor, que o sentido mais profundo das palavras de meu pai revelou-se para mim.
            Brasília é o nosso verdadeiro carnaval, a encarnação de todas as nossas aspirações de país, de todos os vícios históricos que não nos deixam concretizá-las. É um parêntesis, um entreposto geográfico cravado no interior do território, ao mesmo tempo parte dele, ao mesmo tempo um estrangeiro. É a nossa mais bem acabada alegoria, a nossa verdadeira festa de escapismo, mas também nossos desejos mais profundos e nossas melhores intenções.
 Brasília é uma festa e eu estou pronto para amadurecer e me libertar de meu pai. Sim, libertar-me, pois sei que naquela cidade está tudo o que queremos ser e tudo que queremos deixar para trás, embora não saibamos quando e se isso vai acontecer. Parece que algo deu certo no plano todo: Brasília é, mesmo que não daquela forma inicialmente planejada, a minha e a nossa verdadeira emancipação.


(Crônica classificada em sétimo lugar no Concurso "Brasília é uma festa", promovido pela Fundação de Apoio à Cultura do Distrito Federal  - FAC - DF)