Como andam as coisas, grande
velho amigo ou amiga do “passado de sempre”? Digo “passado de sempre” porque
não acredito em amigos do passado. Como se o passado fosse sempre algo concluso
e “para trás”. O passado levou ao presente, assim como amigos do passado
fizeram-me como sou no presente. Sendo assim, é melhor deslocar os amigos no
tempo e, para resolver todo esse problema, prefiro colocar os amigos numa
esfera atemporal. Acima da pesada estrada mundana com relógios a toda esquina,
a rotina controlada com a cirúrgica precisão dos diagnósticos fatalistas...
Estou escrevendo-lhe, porque sei claramente
que estou em débito com você. Costumávamos nos ajudar tanto e, ultimamente,
ando meio sumido. Mas obviamente não é nada com você: é só a correria da vida
que nos deixa sem tempo para o que importa. E atordoado com nossas escolhas,
confusos e hesitantes de seguir em frente. Mas sempre seguimos. Daí, quando
respiramos, quando organizamos momentaneamente o quebra-cabeça da memória e
encontramos as peças que realmente significam algo, é momento de encaixá-las. E
se daqui a alguns anos todas se desencaixarem de novo, espero ter novamente
esses momentos, para nunca perder de vista as peças raras.
E
não digo tudo isso apenas por não ter respondido (ou não ter respondido
devidamente) a seus convites. Para legislar em causa própria, posso dizer que,
pelo menos, acompanho seu trabalho à distância. Ou nas conversas rápidas que me
fazem sentir que tudo é como antes. Mesmo não sendo.
Da
minha parte, garanto que ainda te vejo como antes: o indivíduo em processo da infância
e da adolescência, com tanto medo da “sordidez do mundo adulto”. E depois
também o adulto combativo e sonhador, que ainda se sente uma criança (não
sonhadora, mas assustada). Rótulos e concessões, escolhas fora do plano: tudo isso
faz parecer que algo se perdeu. Mas, se você organizar certinho as peças, verá
o quão grandioso é o quebra-cabeça de sua vida. Não o jogue fora: remende-o, se
necessário. Procure peças sobre a cama ou nos armários esquecidos do quarto da
infância. Tente mudar algumas de lugar e verá que a imagem formada parece menos
caótica. E entenderá que está tudo ali dentro, mesmo que, ao mesmo tempo, tudo
está lá fora. Essa é a brincadeira da vida, desses sentidos que se constroem e
reconstroem e nunca findam.
Eu
sei que não é fácil. Tantas vezes, queria saber organizar melhor, ter algum
tipo de “porta quebra-cabeças” para facilitar o transporte de tantos pedaços. Queria
me livrar da sensação de lacuna permanente, mas assumir que isso é possível é
destruir minha própria metáfora. Se a vida é, para todo sempre, um
quebra-cabeça incompleto, ela só existe entre lacunas. Às vezes, sonho com
reencontros em mesas de bares com aquele grande amigo esquecido do passado. Ou
com aquela paixão flutuante da adolescência, tão intocável em sua pureza não
consumada. Sonho com achar peças em lugares que nunca estive. Ou em me cegar
com o brilho daquelas que, desde sempre, foram opacas.
E
aí me sinto como o estúpido adolescente que viu filmes e leu livros demais.
Covarde, preferi a realidade inventada às lacunas do real. Lunático, projetei a
luta pela igualdade do sofá de minha sala de estar. Insensato, acreditei demais
num fio de sentido que passasse linearmente sobre todos os fragmentos,
unindo-os fortemente, enrijecendo o perigoso mosaico do viver e tapando todos
os buracos. Novo paradoxo infeliz que destrói as porcas metáforas que mal
construí: não há retas ou linhas que possam cobrir, sozinhas e simultaneamente,
toda essa área disforme de existência pulsante. A não ser que unamos uma linha
a outras e dobremos todas em tantas partes...
E
se faço esse texto sobre a incapacidade de ordenar a memória, tampouco é porque
desisti da tarefa. Como poderia ter desistido se esse próprio gesto, o de
escrever, é o constante esforço de conferir sentido, de resgatar farelos, de
passar a linha na agulha e debater com força a ponta da agulha sobre duras
peças que apenas a entortarão. Sim, escrever é o mais irracional dos gestos. E
eu, adepto da poesia-pop, de bobagens lírico-sentimentais (seria, como sugeriu
Chico Buarque, culpa da herança lusitana?), as quais opõem a racionalidade
técnica ao exercício estético, só consigo achar que escrever também é o mais
humano dos gestos. Só é humano para mim o que é irracional e, sendo assim, nada
pode ser mais humano do que continuar vivendo e procurando sentido, mesmo com a
plena consciência da impossibilidade de encontrá-lo.
Não
me demorarei mais, grande amigo do passado. Você também é, para mim, outro
paradoxo: você é a “lacuna preenchida” da minha alma, aquele que dói demais quando
não há relógios por perto. Mas não quero preocupa-lo ou desanimá-lo. Fique
tranquilo, eu estou bem.
Se
tudo isso pareceu pessimista demais, é só uma questão de viés: vejo beleza na
marcha atarantada que fazemos sabe-se-lá-para-onde. Vejo beleza em tantas peças
pelo infinito caminho esburacado. Só me preocupo em não perder de vista o
quarto da infância, os lugares insuspeitos e as pessoas incríveis que encontrei
em cantos e vielas escondidas. Pois é bem verdade que, se não tomarmos cuidado,
podemos elipsar todos esses referenciais. Até porque é tão flexível e mutável
esse material de que são feitas as peças da memória. Ele é fabricado em algum
canto escondido e inacessível onde se tocam nossa mente e nossa consciência. E
não é confiável esse espaço onde ambas tem autonomia, assim como não é
confiável qualquer gesto de percepção que aí se constrói.
Assim, as lembranças podem se confundir com
lendas, as pegadas correm o risco de se apagarem tão logo tiramos o pé do chão
e a própria história nunca escrita de nós talvez desista de gravar-se na
eternidade de nós mesmos. Aí perdemos a vontade até de participar da marcha
coletiva pela busca do sentido sempre fugidio. Esse é meu maior temor e, por
temer, escrevo para você. Alerto com urgência, passo um fio errante e
emaranhado sobre espaços do passado, na esperança de que a insensatez desse
gesto mantenha-nos apaixonados por essa magnífica aventura de errantes.