Alguma utilidade?

Apenas um pouco do que escrevo. Gotas da pretensão que assombra a juventude: a maldita idade lírica, da extrema eloquência com a grande arrogância. Resta apenas desorientação.

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quinta-feira, 28 de março de 2013

Carta à irmã


            Minha pequena, escrevo para relembrar da última vez em que você me fez feliz. Achei que seria uma forma singela de agradecer e talvez lhe ajudar a lembrar da última vez em que você foi feliz.  A vida vai correndo mais manca, teimosa e esbaforida e esse é o tipo de coisa que as vidas esbaforidas acabam esquecendo, pois demandam tempo demais apenas recuperando o fôlego.
            A última vez em que você me fez feliz, eu tinha três e tantos anos e havia um bebê de olhos grandes na cama de meus pais. Sim, lembro claramente dos olhos, sempre esbugalhados e estrábicos: fundos e inquietos demais, assim como devem ser os olhos das pessoas cuja alma não cabe no corpo. Lembro do ciúme, da consciência de que agora a atenção dos velhos seria triplamente dividida. Mas lembro muito da felicidade: uma felicidade egoísta, é fato, que advinha sobretudo de eu ter visto, de relance em seus olhos ternos, a mesma inadequação solitária que me consumiria toda a juventude vindoura. Ali já éramos então irmãos consanguíneos, mas também irmãos de invisibilidade: seríamos os únicos a reconhecer a dor mútua em ambiente lotados.
            A última vez em que você me fez feliz, eu devia ter cinco e tantos anos e vi seus primeiros passos inseguros. Eles eram cambaleantes e determinados, talvez como o de todas as outras crianças. Contudo, nunca tinha visto uma criança andar pela primeira vez antes. De qualquer forma, eles me lembraram que a idéia de ficar de pé e ir adiante não era tão óbvia e natural como parece para os adultos andantes. Ir adiante era meio trôpego e assustador também. E você andava um pouco e sentava e fui feliz por ver que você não tinha vergonha de parar para tomar coragem: eu também sempre precisava de paradas, mas as fazia escondido, porque vivia cercado por pessoas que preferiam cair no chão a parar. E eu me sentia tão pouco destemido por não conseguir ser como elas. Você me mostrou que talvez não havia problema em ser como nós.
            A última vez em que você me fez feliz, eu devia ter uns doze anos e lia para você. Você provavelmente nem prestava atenção e achava meio chato. Só que a fase não era boa para mim e você ouvia por horas, porque sabia que isso me deixava melhor, fazia-me sentir útil. E a sensação de que você estava disposta a fazer algo que te entediava apenas para me deixar bem me fazia imensamente feliz. Você era tão criança ainda e era tão gentil da sua parte e eu sentia tanta hostilidade naquele tempo que a pequena gentileza me fazia derreter.
            A última vez em que você me fez feliz, eu partia para outra cidade, grande e distante. E tinha medo. Você tirou seu broche preferido da gaveta e me deu para levar comigo. E em todas as noites solitárias e frias demais, ou simplesmente tristes e angustiantes (daquelas em que a escuridão se torna palpável e subtrai disposição física como uma esteira desregulada), eu olhava para ele e me sentia um pouco mais em casa. Era apenas um pedaço pequeno de ingenuidade e consideração e me acalmava tanto. E eu fiquei feliz por entender o quão poderosos podem ser os pedaços pequenos de ingenuidade e consideração. Foi você quem me ensinou isso.
            A última vez em que você me fez feliz, eu voltava cabisbaixo e derrotado da cidade grande e distante e você me ajudou a carregar a mala mais pesada que você. Depois, deu-me um abraço e disse que ainda podia me amar mesmo eu desistindo às vezes. Daí eu lembrei que isso fazia sentido, já que você não teve vergonha de sentar no chão e parar um pouco durante seus primeiros passos. E porque você também tinha os olhos esbugalhados da inadequação. E no fim, entendia profundamente essa claustrofobia de espaços extensos e solitários.
            Na verdade, há tantas lembranças da última vez em que você me fez feliz que me dei conta de que você vem me fazendo feliz a vida toda. Só por estar aí, com seus planos, idéias, sonhos, lembrando a melhor versão daquelas pessoas com humanidade em excesso, aflorada demais, sempre expostas e queimando. Ao mesmo tempo, com tanto medo dessa humanidade ainda ser insuficiente no fim das contas. Dela faltar com a disposição necessária para trazer alguma felicidade. Ou dela ser espancada com tanta agressividade circundante. Entendo tudo isso, minha pequena, mas ela também traz recompensas para os que insistem nela. Na verdade, não insistem, estão condenados, porque isso tem mais a ver com carma e olhos. Não esqueça dos olhos.
            Então, é justo esse texto existir para registrar que o excesso de humanidade me fez tantas vezes feliz. Quem sabe outros sofram da mesma doença que você e entendam que ela também é uma cura. Quem sabe, quanta presunção da minha parte, ele ajude você também a achar parte da sua cura. Depois, você pode engarrafá-la em broches-pedaços-de-ingenuidade e distribui-la por aí também. Assim, deixo meu agradecimento profundo. E meu mais sincero testemunho de afeto, pequena.