Ele a observou calmamente, óbvio
que não era bela. De fato, também não era magra, nem possuía aquela
feminilidade traiçoeira de esguias curvas e movimentos sinuosos demais.
Tampouco era jovem. Morena, cabelos compridos. Reparou, contudo, suas feições
melancólicas, seus olhos fundos e recheados de cansaço, a forma lenta e
delicada como empacotava as compras: tudo nela era a imagem da solidão
paciente. Paciente, mas não resignada. Estava maquiada, na segunda-feira à
noite, para uma ida ao mercado. Na verdade, sua maquiagem era carregada, havia
algo de teatral na forma como se pintara. Uma tatuagem que discretamente se
deixava ver no espaço de pele nua das costas que, tal qual uma janela, a blusa
parecia expor sem querer. Tudo aquilo, de alguma forma, o comoveu.
Como
lhe era de hábito, ficou fantasiando as histórias pregressas, o rico e
minucioso universo pessoal da anônima desconhecida. Ele adorava essa atividade,
sempre o fazia lembrar que a humanidade podia também ser apaixonante. Ela
talvez já fora muito bela e desejada quando jovem, talvez muito amada, daí a sensação
que ele tinha de que ela era a imagem de uma pessoa apagada. E isso era
claramente diferente do que via nas pessoas que ainda procuravam brilhar, mas
que nunca sentiam que seriam capazes. Essas costumam ser cruéis, ambiciosas,
com sua energia louca, sua felicidade egoísta, seus tantos planos demais. As
pessoas que já apagaram, do contrário, são mais frequentemente amarguradas ou
apenas de uma tristeza discreta de tão singela.
Sim,
enquanto ela empacotava sua última compra, pensou que ela era singela. Quando ela
se virou para colocar as sacolas no carrinho de supermercado, notou que a
tatuagem em suas costas era de uma borboleta. Mas a borboleta dela já não era
mais a tatuagem genérica por excelência, porque a pele oculta da desconhecida anônima
passava a ganhar unicidade na mente dele. Porque agora a imagem se conformava
aos delírios e reforçava outra condição: ela estava fixada e presa a um
solitário universo pessoal imaginado. Ele esboçou mentalmente os muitos
roteiros da história daquela tatuagem: quisera apenas provocar os pais? Ficara
de porre com algumas amigas e tomou uma decisão no impulso? Queria ser vista
com a pele marcada por algum cara que, no fundo sabia ela, gostava de marcas à
vista para lembrar de marcas mais profundas?
Por
que as pessoas marcam a pele? Essa segunda indagação quase o fez perder a
estranha de vista, mas ele pagou rápido seu último item e acompanhou o trajeto
dela até o estacionamento. Há muitas razões, decerto, mas esse ato de auto
violência sempre o seduziu. Estava claro que o fascinavam as mulheres tatuadas,
as pessoas que, de alguma forma, no corpo, estampam a violência da alma. Nem
tudo é violência na marca, isso também é fato. Mas se ele embasbacava tanto com
essas ideias, por que nunca teve coragem de marcar a própria pele?
Já
pensara nisso antes, decerto, mas como aquelas hipóteses vagas e distantes da
realidade. Pois a ideia de permanência o assustava. E também, no fundo, sabia
que tinha suas próprias formas de marcar e sujar e limpar e gritar pelo corpo o
sufoco de, dia após dia, ter de continuar fingindo que não sente falta da
comunhão e da completude.
Os
pensamentos centraram-se de novo só nele e no fato de sentir-se seduzido (ou
querer deixar-se seduzir?) por pessoas que lhe encarnam a imagem da solidão. Bem
sabe que poderia gostar mais de si mesmo se acreditasse que amava as
alteridades ocultas, mas, na verdade, no fim sabia que essas pessoas imaginadas
faziam ele se sentir compreendido. E então a questão voltava a ele e ele se
chocava ao perceber que ele nunca tinha virado um homem.
Tinha
certeza de que, mesmo que conquistasse toda autonomia do mundo e todos os seus
predicativos de sucesso, mesmo que se relacionasse como quem não precisa, a
solidão também estaria em seus olhos enquanto empacotasse suas compras no supermercado
divagando sobre anônimas desconhecidas e igualmente solitárias. E ainda seria
uma criança, como todos os homens a sua volta. Crianças manipuláveis, cheios de
desejo de serem guiados enquanto interpretam o papel de quem guia, plenamente
conscientes que se deixam enganar. E ficou pensando se alguma anônima solitária
o observara. De fato, o ego tem seus caprichos, talvez excessivos demais.
Antes
que ela entrasse no carro, fingiu esbarrar nela. Pediu desculpas, mas ela
sorriu compreensiva. Ele se ofereceu para ajudá-la a guardar as compras como
recompensa. Perguntou coisa ou outra banal e suas respostas eram sempre
delicadas, gentis e partidas: aquelas respostas que dizem pouco, dão a entender
que há muito mais e conferem todo ar de incompletude e pressa a todas as
conversas.
Descobriu,
contudo, que moravam no mesmo bairro. Ela lhe ofereceu uma carona, gesto raro
nesse mundo de derretidas confianças. Ele aceitou de prontidão. Talvez ela
fosse mesmo um pouco solitária, talvez ele estivesse tão apaixonado pela imagem
que criara que conseguiria encaixar qualquer anônima desconhecida naquela
moldura. Como saber? Já pensara muito sobre isso, as construções simbólicas que
sustentaram todos os seus relacionamentos e os levaram a acabar. Mas todos os
relacionamentos são assim, não? Quem poderia culpa-lo por isso? Ou será que, no
caso dele, fosse pior? Que só ele sempre enxergasse o mesmo mundo, aquele já
criado pela sua subjetividade em alguma instância inacessível?
Ela tinha batom vermelho nos lábios, mordia
eles devagar enquanto dirigia por novas ruas e ele apenas descansou os olhos naquela
imagem pelos dez minutos do silencioso percurso. Antes de descer, conseguiu o
telefone dela. Ficou de ligar para combinarem de se ver. Não saberia jamais
responder às últimas indagações, as que a vida toda o inquietaram. Com exceção
de uma: parecia-lhe estúpido agora pensar que qualquer uma poderia ter
preenchido, para ele, o papel que criara para a bela estranha meia hora atrás
no mercado. Por alguma razão ardilosa, tinha certeza de que apenas ela caberia
nele. E então teve certeza que iria se apaixonar. E, pela enésima vez na vida,
foi preenchido pelo sentimento que lhe faz entender por que as pessoas marcam a
própria pele.