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Apenas um pouco do que escrevo. Gotas da pretensão que assombra a juventude: a maldita idade lírica, da extrema eloquência com a grande arrogância. Resta apenas desorientação.

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sábado, 8 de novembro de 2014

Ela, ele, ambos: uma separação em três atos


Ela – Tatuagem
            Já estava esperando há uma semana o momento de chorar em frente ao terapeuta e atropelar as lágrimas enquanto se desintoxicava dele com o falatório frenético:
            - O problema é que ele nunca entendeu a minha solidão. Havia manhãs e manhãs, mas havia também aquelas noites claras em que eu me sentia tão completamente só e só queria que ele me levasse para seu sonho, que sempre parecia harmonia. Quando o apertava forte junto ao meu corpo e o abraçava para nunca mais sair, era para que entendesse que eu queria rasgá-lo, arranhá-lo, marcá-lo e depois sentir vergonha: era minha forma de ter certeza de que estava fora de controle quando cravei fundo em sua pele. Porque aí poderia me enganar e dizer que ele me teve o tempo suficiente para eu apagar de minha fragilidade. Mas o que nos demoliu foi que ele nunca entendia. Ele não entendia nada que não fosse puramente literal e ninguém ia dar conta de pedir as coisas que eu queria pedir: todas as pequenas banalidades que chamávamos de nós, queria ter alguma garantia de que não era só eu que precisava demais daquilo. Mas não era pura mesquinhez, era uma necessidade de me afogar em sua pele, um desespero de chorar menos nas noites claras, uma vontade de me sentir menos sozinha, de ser ilhada por ele, sem nenhuma saída que não nós em todas as direções. E tudo isso começou a assustá-lo, essa minha desesperada agonia vibrante e sei que foi aí que comecei a acabar conosco. E pensar que ele que se foi achando que eu não queria mais. Óbvio que não era isso, ele e seu medo risível das metáforas. Eu só não queria dizer que precisava muito. E na noite em que ele se foi, sonhei que dançava para uma plateia vazia e que isso me entristecia. Ele me assistia dos bastidores e sabia que eu estava melancólica com a plateia vazia, mas mesmo assim continuava nos bastidores. Eu percebia que ele me assistia nos bastidores e que não iria para a plateia, e isso me enchia de mágoa e abandono. Tomada por uma súbita alucinação, eu rodopiava sob luzes tênues que depois começavam a piscar e o rosto dele apenas aparecia como instantâneos fotográficos na escuridão, cada vez mais fugidio, como a zombar de mim, revelando sua natureza etérea e frágil. E eu entendia que era por isso que eu quis tanto tocá-lo e marcar fundo: era esperança de tornar concreto e tangível o rosto de luzes e sonhos que me assistia dos bastidores. E eu girava cada vez mais rápido, pois queria ser tomada completamente pela vertigem ensandecida e apagar. Queria a escuridão. Queria me certificar de que nem todas as marcas na pele, na alma, na rotina, nos lençóis, nos silêncios, nas discussões cheias de fúria e prolixidade, nos olhares transbordando de lamento, nenhuma marca tinha sido suficientemente forte para impedir que ele evaporasse nos bastidores de uma dança sem plateia com luzes que me deixavam tonta. A última coisa de que me recordo antes de desacordar no sonho e acordar para a realidade era da música que tocava ao fundo, soprada dos bastidores agora vazios: “Tatuagem”, de Chico Buarque.
Ele – Trocando em miúdos
            Ele entrou já trôpego no segundo bar e pediu uma dose de cachaça à garçonete mal-humorada. Só queria se embriagar, apoderado sabe-se lá do quê, com a certeza de pertencer ao irresistível clichê dos amantes bêbados e abandonados. E queria se embriagar nas entranhas da madrugada num bar caindo aos pedaços, mal iluminado e vazio, para reforçar seu sentimento de completo abandono e desvelo. Queria reprisar todos os acontecimentos dos últimos meses, queria responder a ela todas as acusações absurdas que fizera. Bem, ele também fizera acusações absurdas e dissera coisas que não se diz, palavras que não se interceptam no ar, que acertam velozes e depois ficam congeladas para garantir que não haverá nunca mais o retorno ao instante imediatamente anterior à eclosão delas. Era por isso que, na maioria das vezes, ele gostava de responder só a uma versão imaginária dela, que existia apenas na cabeça dele e a quem dizia quase tudo que nunca conseguia dizer pessoalmente.
            Perdido nesse exercício de flexão do ego e auto piedade, posou os olhos num karaokê largado no fundo do bar. Nunca cantara em público e sempre odiara expor-se, mas daí lembrou que não havia ninguém ali além dele. Naquele instante, adorou o fato de que, em japonês, karaokê significava orquestra vazia. Adorou porque sentiu aquilo como metáfora de sua situação. E ele adorava metáforas. Pois bem, ele iria cantar com a orquestra vazia para uma plateia de uma pessoa só: ela, sentada na primeira fileira, que ouviria tudo que ele tem a dizer.
            Dirigiu-se ao fundo do bar, pegou o microfone na mão e escolheu qualquer música. Isso era irrelevante. Ele estaria cantando sempre a mesma música: Trocando em miúdos, de Chico Buarque. Ele, como o eu-lírico da música, estaria revendo o saldo de um relacionamento, passando com um trator por cima das pontas soltas, na fúria de transformar tudo em pó o mais rapidamente possível. E enquanto cantava seu drama pessoal olhando diretamente para ela, sentia que se libertava. No meio de sua serenata às avessas, arrancou a aliança do dedo e jogou no chão: assim, nesse teatro de si mesmo, interpretando o personagem que é pura mágoa e ressentimento, tinha certeza de que seguiria em frente.
            Só que ele, ao contrário do eu-lírico da canção, desandou a chorar desesperadamente no meio do show e ela nem se moveu na plateia imaginária que ele criara. Ela permaneceu impassível enquanto ele engolia, sozinho, as lágrimas quentes que emergiam compulsivamente. E então ele começa a sentir-se tonto e nauseado de dor por se alimentar das próprias lágrimas. E cai desacordado no chão frio de um bar abandonado no meio de lugar nenhum.
Ambos – Futuros Amantes
            A garçonete estava cansada daquela cena. Já a assistira inúmeras vezes: homens bêbados abandonados pelas mulheres, que achavam que seus dramas eram os maiores da Terra. Ela jamais tivera ninguém, então era razoável que julgasse o amor uma coisa de tolos. Ela era mais astuta que isso, ela entendia os mecanismos que norteavam o comportamento dos amantes: não passava de sujeição a um modelo cultural de amor romântico criado muito antes de qualquer um de nós nascermos. Ela nunca fora à escola e não desenvolvia essa ideia com tanta prepotência e academicismo, mas sua inteligência rara não deixava escapar o fato de que o tipo “bêbado-amante-abandonado”, tentando conversar com ela sobre dores do abandono, havia crescido muito em frequência ali desde que Reginaldo Rossi fizera muito sucesso com a música “Garçom”.
            Da parte dela, havia uma irritação tremenda com esse egoísmo exacerbado dos amantes, que sempre julgavam sua dor a maior de todas. Ela era assim, amargurada e segura: fizera-se sozinha, não precisava e nem queria precisar de ninguém. Não era tola, porque já fora uma jovem bela e se divertira um pouco com alguns homens. Muito menos do que poderia, é fato, mas é que ela se entediava fácil com tudo aquilo.
            Naquela noite em específico, estava incomodada com aquele rapaz que entrara ali na alta madrugada e não parava de virar doses de cachaça. Ela mesma já teria fechado se o estabelecimento fosse dela, mas ela nunca tivera nada e aprendera a “fazer o que tem que ser feito para continuar viva”, como gostava de dizer. De qualquer forma, achou peculiar (não original, que fique claro!) e até divertida a forma como aquele rapaz gesticulava os lábios e parecia achar que cantava quando pegou o microfone do karaokê. E bem, eram quatro da manhã naquela espelunca que subtraíra metade da sua juventude: fato raro que ela achasse algo divertido!
            É claro que logo o rapaz desmaiou de bêbado e ela teve de chamar uma ambulância e voltar ao seu mau humor costumeiro.  Agora, pelo menos, poderia partir, ela pensou. Enquanto limpava o chão, percebeu que o jovem deixara um anel próximo ao local em que cantava. Ela colocou em sua bolsa, determinada a ver se conseguia vendê-lo no dia seguinte.
            Ao chegar em casa, já amanhecia. Antes de se deitar, pegou-se olhando em frente ao espelho e testando o anel em sua mão. Por um instante fugaz, permitiu-se enganar por tudo aquilo que chamava de “essa bobagem toda”:            fantasiou a história do casal para o qual aquele anel já significara muito. Pensou sobre as noites frias em que eles se sentiram sozinhos e fizeram companhia um ao outro. E também começou a devanear sobre como seria legal ter alguém como companhia quando ela se sentia fraca demais. Mas daí lembrou-se de censurar-se de novo por perder-se naquelas fantasias que, muito antes aprendera, era um luxo ao qual não podia se permitir.
            Sim, ela entendia todos os esses sonhos como luxo.  Sobretudo por ter, desde cedo, consciência de que os homens à sua volta queriam que ela acreditasse ser frágil apenas por ser mulher. Ela sabia quão estúpida era essa ideia, principalmente ela que, graças a Reginaldo Rossi, entendia como ninguém que os homens também tinham delírios românticos, a maior parte deles mais ingênuos e egocêntricos que o das mulheres. De qualquer forma, ela não daria margem alguma para que alguém voltasse a vê-la como frágil. Ela “faria o que fosse necessário para sobreviver”.

            Jogou o anel numa gaveta e prometeu-se penhorá-lo no dia seguinte. Deitou-se em sua cama estável e sonhou que se apaixonava até às raias da loucura por alguém que se apaixonava por ela também e, pela primeira vez, dividia a cama para dormir, entregando-se à instável presença do outro nesse momento de plena vulnerabilidade. Aquele anel nunca saiu daquela gaveta.