Escrevo tão somente para listar o que perdemos.
Obviamente, essa não será sua hora favorita, mas essa sempre foi minha hora
inevitável. Pense nessa carta como aqueles intervalos de almoço, nos quais eu
aproveitava os poucos instantes livres do dia para despejar sobre você minha
fileira de desesperos, e você apenas aquiescia mudo. Nessas horas, eu entendia
que não deveria nem ter começado. Porque você era diferente. Quero dizer, você sabia sempre da realidade
desfigurada à sua volta enquanto vestia a fantasia do dever, mas era capaz de
se transportar para outro mundo quando podia tirá-la. Naquele mundo, existia a
paz do almoço compartilhado vagarosamente, a vida como um desfile de amenidades
agradáveis, um mundo no qual as pessoas eram incrivelmente gentis.
Eu, veja bem, nunca
pus o uniforme do dever. Por conseguinte, sou incapaz de tirá-lo, vivo mesmo em
estado de perplexidade e não consigo jamais apertar aquele botão que todos
usam, aquele que emudece todos os ruídos estéreis e desesperadores da realidade
à volta. Só me restar escrever sobre o que perdemos.
E perdemos tanto,
quem diria! Perdemos enquanto sabíamos que perdíamos. Perdemos enquanto, ai de
nós, estávamos dando conta de tudo que se passava. Ainda assim, subestimamos
nossas perdas por larga margem. Até meu vocabulário, repare, antes tão
desenvolto para discorrer sobre os aspectos estéticos da existência, tornou-se
mais técnico, largas margens e grandes retornos, realidades simples e silenciosamente
agoniantes. Mas perdemos passivamente, mantendo a rotina, acordando cedo e
olhando calmamente o mesmo belíssimo nascer do sol sobre o mesmo famoso solo
pátrio, tomando o mesmo cafezinho e chorando por dentro enquanto colecionávamos
belos e coloridos eletrodomésticos.
Ah, como perdemos
imensos montantes... Perdemos complexidade, “market share”, flexibilidade, olhar vago e lento sobre as belezas
contraditórios da existência. Perdemos pedaços da alma, certezas, exposição de
mercado, laços antigos, narrativas sobre nós mesmos, valor acionário...
Perdemos poder de sermos síntese entre o mundo tal qual é e tal qual dizem que
ele deve ser. Perdemos a prepotência
ingênua, o amadorismo romântico, o título da dívida.
Ainda posso salvar
seu almoço, contudo, se disser que também me dei conta de que ganhamos algo. Foi
hoje, enquanto fitava o branco reluzente dos azulejos do meu banheiro ao
escovar os dentes pela manhã. Checava no espelho se não deixei nenhum pedaço de
comida próximo à gengiva e matutava a respeito de mil preocupações tolas. A iluminação já veio como “insight” mesmo, a lembrar que minha língua já fora mais rica, como
também minha existência já portara significados mais complexos. Tudo desmoronou,
de uma vez, e já não me ilumino mais. Só tenho “insights”. Veio de súbito, na forma de lembrança.
Foi há muito tempo, sentado em frente a um lago
e pescando com meu pai, após tomar minha primeira cerveja. A brisa leve beliscava
a superfície entediada da água e eu, pela primeira vez, não me aborrecia com a
ideia de que a vida poderia não ser uma sucessão de fatos. Sucessão de fatos
são, no fim das contas, muito simples. A lentidão, por outro lado, pode ser
complexidade.
A
natureza à volta era menos colorida e segura que meus muito eletrodomésticos,
mas naquele dia entendi que ela era a única salvação para os que não vestiam
(e, portanto, não tiravam) nunca o uniforme do dever. Era tão lenta a natureza
e tão acolhedora a leve embriaguez. Poucos ruídos dispersos, a vida bem podia
também ser um pouco aquilo, porque aquilo deixava espaço para que eu também
fosse narrador. Adorei a iluminação: a
vida como incerta narrativa a ser rabiscada. Mas então olhei para meu pai e me
ocorreu que ele talvez já tenha se sentido da mesma forma enquanto pescava com meu
avô. O que será que mudara desde então? Sentia-se ele autor da própria
narrativa? E se ele perdera também essa autoria? Como ele fora capaz de
resistir a tal processo?
Essa ideia difusa me assustou profundamente e
tratei de afastá-la. Veja, caro amigo, quão engraçada é a memória. Jamais
apostaria que um momento tão lírico viria novamente à minha mente enquanto
procurava pedaços de comida entre os dentes. E que o lirismo seria reduzido à
objetividade de um “insight” e que
aquele quadro, aberto e lento, voltaria emoldurado pelo fatalismo funcional,
sequencial e veloz da rotina.
Estou sendo prolixo, eu sei. Perdoe-me. Vamos
às conclusões. Espero sinceramente que ainda não tenha acabado a sobremesa.
Desde ontem, a realidade já desmoronou completamente.
Na verdade, há meses ela vem desmoronando completamente dia após dia, suas
camadas carregadas pelo vento leve que entra em nossas cozinhas enquanto
assistimos ao nascer do sol e tomamos café. E nós viemos vivendo todos esses
dias de desconstrução completa sem sequer nos darmos conta de que ela ocorria.
Veja, meu caro amigo, ficamos tão resistentes
que vivemos a prova sem saber que estávamos sendo testados. Mudamos tanto e de
tal forma que aprendemos a resistir sem fazer causo disso. Perdemos tudo desde
ontem, é fato, mas ganhamos também a mais imensurável capacidade de não tomar
nota do que se perde.
Pagamos um preço, não nego. Sequer sei o que nos tornamos, tampouco acho
que gosto. Entretanto, que não duvidem de nossa resiliência, pois já somos
sobreviventes tão calejados que sequer percebemos o que éramos: isso,
sobreviventes. Achei tal ideia tola o máximo, até porque notei que a palavra
sobrevivente é formada após a adição de um prefixo ao radical “vivente”. As
pessoas antes precisam ter sido “viventes” para ganhar a casca grossa conferida
pelo prefixo “sobre”. A casca as cobre e é capaz de tapar a entrada de luz, mas
também garante proteção quando os mais fortes abalos sísmicos ocorrem.
Era esse, enfim, o meu “insight”, quis dizer que ganhamos algo sendo perdedores. Agora tudo
parece meio tonto, carregado de
pretensões demais e qualidade técnica de menos. Não sei nem mesmo se ficou
claro, agora acho até que jamais foi “insight”,
apenas escuridão. Ou duas noites mal dormidas.
De toda forma, tenho medo de que esqueçamos que
já fomos viventes contemplando o lago antes disso tudo. E que respirávamos a
vida com tanta alegria que queríamos mesmo congelar aquela sensação para sempre.
É, meu caro amigo, talvez nada nos dê mais consciência do tempo que escorre
pelas mãos do que essa alegria tão intensa que até inebria.
Perdoe-me se estraguei seu almoço com minhas
observações soturnas. Você sabe como adoro perturbar sua rotina. Ressalte-se, contudo, que admiro demais a
disciplina com a qual você serve à causa da estabilidade. Você é o tipo de
pessoa que os mundos em desagregação precisam. Eu, por outro lado, sou um
produto que precisa ser descontinuado. Espero que tenha gostado da torta de
morango da cantina da Dona Maria que você sempre come de sobremesa. Venha me
visitar algum dia, se sobrar espaço em sua agenda. Sinto falta do truco às
quintas. Mande notícias.
Sinceramente,