Alguma utilidade?

Apenas um pouco do que escrevo. Gotas da pretensão que assombra a juventude: a maldita idade lírica, da extrema eloquência com a grande arrogância. Resta apenas desorientação.

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sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Sobre o que perdemos


Escrevo tão somente para listar o que perdemos. Obviamente, essa não será sua hora favorita, mas essa sempre foi minha hora inevitável. Pense nessa carta como aqueles intervalos de almoço, nos quais eu aproveitava os poucos instantes livres do dia para despejar sobre você minha fileira de desesperos, e você apenas aquiescia mudo. Nessas horas, eu entendia que não deveria nem ter começado. Porque você era diferente.  Quero dizer, você sabia sempre da realidade desfigurada à sua volta enquanto vestia a fantasia do dever, mas era capaz de se transportar para outro mundo quando podia tirá-la. Naquele mundo, existia a paz do almoço compartilhado vagarosamente, a vida como um desfile de amenidades agradáveis, um mundo no qual as pessoas eram incrivelmente gentis.
                Eu, veja bem, nunca pus o uniforme do dever. Por conseguinte, sou incapaz de tirá-lo, vivo mesmo em estado de perplexidade e não consigo jamais apertar aquele botão que todos usam, aquele que emudece todos os ruídos estéreis e desesperadores da realidade à volta. Só me restar escrever sobre o que perdemos.
                E perdemos tanto, quem diria! Perdemos enquanto sabíamos que perdíamos. Perdemos enquanto, ai de nós, estávamos dando conta de tudo que se passava. Ainda assim, subestimamos nossas perdas por larga margem. Até meu vocabulário, repare, antes tão desenvolto para discorrer sobre os aspectos estéticos da existência, tornou-se mais técnico, largas margens e grandes retornos, realidades simples e silenciosamente agoniantes. Mas perdemos passivamente, mantendo a rotina, acordando cedo e olhando calmamente o mesmo belíssimo nascer do sol sobre o mesmo famoso solo pátrio, tomando o mesmo cafezinho e chorando por dentro enquanto colecionávamos belos e coloridos eletrodomésticos.
                Ah, como perdemos imensos montantes... Perdemos complexidade, “market share”, flexibilidade, olhar vago e lento sobre as belezas contraditórios da existência. Perdemos pedaços da alma, certezas, exposição de mercado, laços antigos, narrativas sobre nós mesmos, valor acionário... Perdemos poder de sermos síntese entre o mundo tal qual é e tal qual dizem que ele deve ser.  Perdemos a prepotência ingênua, o amadorismo romântico, o título da dívida.
                Ainda posso salvar seu almoço, contudo, se disser que também me dei conta de que ganhamos algo. Foi hoje, enquanto fitava o branco reluzente dos azulejos do meu banheiro ao escovar os dentes pela manhã. Checava no espelho se não deixei nenhum pedaço de comida próximo à gengiva e matutava a respeito de mil preocupações tolas.  A iluminação já veio como “insight” mesmo, a lembrar que minha língua já fora mais rica, como também minha existência já portara significados mais complexos. Tudo desmoronou, de uma vez, e já não me ilumino mais. Só tenho “insights”. Veio de súbito, na forma de lembrança.
Foi há muito tempo, sentado em frente a um lago e pescando com meu pai, após tomar minha primeira cerveja. A brisa leve beliscava a superfície entediada da água e eu, pela primeira vez, não me aborrecia com a ideia de que a vida poderia não ser uma sucessão de fatos. Sucessão de fatos são, no fim das contas, muito simples. A lentidão, por outro lado, pode ser complexidade.
 A natureza à volta era menos colorida e segura que meus muito eletrodomésticos, mas naquele dia entendi que ela era a única salvação para os que não vestiam (e, portanto, não tiravam) nunca o uniforme do dever. Era tão lenta a natureza e tão acolhedora a leve embriaguez. Poucos ruídos dispersos, a vida bem podia também ser um pouco aquilo, porque aquilo deixava espaço para que eu também fosse narrador.  Adorei a iluminação: a vida como incerta narrativa a ser rabiscada. Mas então olhei para meu pai e me ocorreu que ele talvez já tenha se sentido da mesma forma enquanto pescava com meu avô. O que será que mudara desde então? Sentia-se ele autor da própria narrativa? E se ele perdera também essa autoria? Como ele fora capaz de resistir a tal processo?
Essa ideia difusa me assustou profundamente e tratei de afastá-la. Veja, caro amigo, quão engraçada é a memória. Jamais apostaria que um momento tão lírico viria novamente à minha mente enquanto procurava pedaços de comida entre os dentes. E que o lirismo seria reduzido à objetividade de um “insight” e que aquele quadro, aberto e lento, voltaria emoldurado pelo fatalismo funcional, sequencial e veloz da rotina.
Estou sendo prolixo, eu sei. Perdoe-me. Vamos às conclusões. Espero sinceramente que ainda não tenha acabado a sobremesa.
Desde ontem, a realidade já desmoronou completamente. Na verdade, há meses ela vem desmoronando completamente dia após dia, suas camadas carregadas pelo vento leve que entra em nossas cozinhas enquanto assistimos ao nascer do sol e tomamos café. E nós viemos vivendo todos esses dias de desconstrução completa sem sequer nos darmos conta de que ela ocorria.
Veja, meu caro amigo, ficamos tão resistentes que vivemos a prova sem saber que estávamos sendo testados. Mudamos tanto e de tal forma que aprendemos a resistir sem fazer causo disso. Perdemos tudo desde ontem, é fato, mas ganhamos também a mais imensurável capacidade de não tomar nota do que se perde.
Pagamos um preço, não nego.  Sequer sei o que nos tornamos, tampouco acho que gosto. Entretanto, que não duvidem de nossa resiliência, pois já somos sobreviventes tão calejados que sequer percebemos o que éramos: isso, sobreviventes. Achei tal ideia tola o máximo, até porque notei que a palavra sobrevivente é formada após a adição de um prefixo ao radical “vivente”. As pessoas antes precisam ter sido “viventes” para ganhar a casca grossa conferida pelo prefixo “sobre”. A casca as cobre e é capaz de tapar a entrada de luz, mas também garante proteção quando os mais fortes abalos sísmicos ocorrem.
Era esse, enfim, o meu “insight”, quis dizer que ganhamos algo sendo perdedores. Agora tudo parece meio tonto, carregado de pretensões demais e qualidade técnica de menos. Não sei nem mesmo se ficou claro, agora acho até que jamais foi “insight”, apenas escuridão. Ou duas noites mal dormidas.
De toda forma, tenho medo de que esqueçamos que já fomos viventes contemplando o lago antes disso tudo. E que respirávamos a vida com tanta alegria que queríamos mesmo congelar aquela sensação para sempre. É, meu caro amigo, talvez nada nos dê mais consciência do tempo que escorre pelas mãos do que essa alegria tão intensa que até inebria.
Perdoe-me se estraguei seu almoço com minhas observações soturnas. Você sabe como adoro perturbar sua rotina.  Ressalte-se, contudo, que admiro demais a disciplina com a qual você serve à causa da estabilidade. Você é o tipo de pessoa que os mundos em desagregação precisam. Eu, por outro lado, sou um produto que precisa ser descontinuado. Espero que tenha gostado da torta de morango da cantina da Dona Maria que você sempre come de sobremesa. Venha me visitar algum dia, se sobrar espaço em sua agenda. Sinto falta do truco às quintas. Mande notícias.


Sinceramente,

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