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Apenas um pouco do que escrevo. Gotas da pretensão que assombra a juventude: a maldita idade lírica, da extrema eloquência com a grande arrogância. Resta apenas desorientação.

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sexta-feira, 11 de março de 2016

Meu pai([ís])


“E a gente fez nosso futuro/ Quase quebrando o nosso mundo...”

(Nosso Mundo – Barão Vermelho)

          É irônico, mas foi muito longe de meu país que encontrei pela primeira vez meu bicho papão.   O bicho papão era um homem, mas quase não vi seu rosto: seu carro, algum modelo de Ford bem antigo (da época em que os designers não se importavam em abusar de ângulos retos), estava completamente coberto de adesivos, cartazes e dizeres. Não esqueço o primeiro em que bati o olho: era uma ofensa racial inominável, escrita em letras vermelhas sobre um fundo branco. Meu coração disparou de súbito. Por um breve instante, meus olhos cruzaram com o do condutor do veículo: um sujeito de meia idade, poucos cabelos, camisa listrada e olhos inexpressivos e duros. Eu quis muito apertar o passo, quis mudar de calçada, desaparecer, voltar para qualquer quarto protegido inexistente, guardado em alguma lembrança difusa, mais estado de espírito que imagem.
É verdade que muitas vezes já havia imaginado como seria encontrar pessoalmente o que até então era para mim um personagem. Eu sempre me questionara se havia alguma maneira pela qual todo aquele ressentimento imenso poderia se humanizar caso ganhasse rosto.  Mas, para meu desespero, o homem sem face era carro de ódio, o carro era todo palavra e imagens e as palavras e imagens eram só violência pura e concentrada. E então eu senti-me mais fraco do que nunca, mais impotente e descartável do que jamais fora: porque nem toda razão letrada, racionalidade elegante ou ponderação razoável fariam a imagem daquele carro e a lembrança daquele olhar saírem de minha mente.  A razão burguesa é piada de mau gosto para a força irracional. Foi então que lembrei do meu país e quis chorar.
É engraçado que aquela também tenha sido a manhã em que eu tenha lido a seguinte manchete em um blog de um famoso comentarista político brasileiro: “A crise ganhou um novo componente. E ele veste farda e pilota tanques.” Engraçado ou providencial,  já que da realidade vemos o que buscamos e não existe nada mais plástico do que a tal verdade. A minha verdade naquela manhã era a verdade dos desapontados, aqueles que acreditavam até o último minuto que seríamos melhores.
 Não estava sozinho nessa. Nem de longe. De qualquer forma, talvez por certa mesquinharia que andei diagnosticando em mim recentemente, senti-me mais sozinho do que nunca, como se sentem todos os ingênuos quando começam a enxergar cruamente os mecanismos operando por trás de suas ilusões. Havia tempos que pescava dizeres se formando em pedaços amorfos de minha mente, uma necessidade imensa de falar mais e ainda além dos meus costumeiros excessos, buscando uma primeira pessoa que fosse mais íntima da que geralmente sou capaz de encontrar. Contudo, a realidade rachando trouxe mais urgência ao costumeiro esforço de costurar os poucos pedaços de verdade aos quais ainda ouso me apegar.
E foi então que lembrei de um texto que havia escrito ainda nos idos de 2014, quando o espírito daquele carro de ódio começou a se materializar em seus primeiros objetos: teclas descoordenadas, cartolinas mal pintadas, bonecos carnavalescos, bolas de futebol furadas, muros repintados, mesas gargalhantes, letras maiúsculas, letras minúsculas cheias de si... O ódio cabia em tantos espaços e  como tinha propriedades subcutâneas! Quis relê-lo, ele me trouxe algum alento, ainda naquela época já era mais jovem que hoje.  Se não o publiquei antes é porque o julgava íntimo demais, alma revirada do avesso sem nenhum cuidado estilístico. Seria um pecado em tempos comuns, mas não sinto tempos comuns. Então o reproduzo abaixo, como quem também o reescreve.
Do dia em que Lula foi eleito, em 2002, lembro-me de duas coisas: de que caía uma chuva fina em minha cidade e também de que foi a primeira e última vez que vi meu pai chorar. Quando decidi que precisava (mais do que queria) escrever sobre meu pai, decidi que queria começar o texto com essa lembrança. Porque meu pai sempre veio a mim aos poucos e, talvez por isso, seja muito mais fácil para mim falar sobre ele do que para ele. A verdade é que ele  sempre foi um homem político, no sentido completo do termo, daqueles que acreditam que quaisquer conquistas, responsabilidades ou culpas sempre são, em alguma instância, coletivas. Meu pai também é, sem dúvida alguma, o melhor homem que conheço.
          Memórias de infância, lembro-me muito do silêncio de meu pai. Falava pouco, quase nada sobre si e costumava perguntar muito sobre os outros. Infelizmente, não herdei essas características. Trabalhava demais, nunca chegava antes das dez da noite em casa. Saía antes das seis e meia da manhã. Parecia sempre cansado.
 Meu pai entendia homens de lealdades simples, desde que fossem francos e tivessem posição. Em tudo proletário, meu pai: na alma e na postura. Em tudo um homem da Guerra Fria também: palavras objetivas, expressão clara, sem dobras. Trabalhava doze horas por dia e sempre chegava em casa de mansinho. Isso me lembra o quanto admirava o pai. Calado, gentil, até perdoava seu filho em cima do muro, comedido, condescendente e contemporizador. “Bunda mole”, vá lá, “mas de bom coração”.
Dava seu melhor quando estava presente. Tentava ver filmes conosco toda quinta-feira e, invariavelmente, caía no sono, derrotado, no sofá. Costumava acordar sobressaltado à noite, ar faltando, respiração ofegante: dizia-nos que era apnéia do sono. Eu tinha muito medo dela, porque achava que um dia aqueles pesadelos poderiam levar meu pai.
            Mais tarde, soube que meu pai tinha princípios políticos (e muitos gostavam de falar isso em voz baixa, mão do lado da boca, como se fosse um pecado que poderia ser perdoado devido a todas as outras virtudes dele). Soube que estudara em Brasília também, ainda nos terríveis anos setenta de chumbo grosso.
Certa feita, contou-nos sobre como invadiam o alojamento estudantil à noite, armados e fardados, e, no dia seguinte, alguns estudantes não estavam lá. Também mencionou histórias sobre tanques rodeando corpos estáticos. Formei uma imagem: portas da universidade se fechando, luzes se apagando e todos deitados no chão em fila, enquanto tanques subiam o pátio e circundavam os corpos vivos vagarosamente. Eu sempre indaguei o porquê daquilo e ele nunca respondeu. Eu não podia compreender ainda as ações inúteis tomadas apenas pelo prazer de intimidar. Dessa época, veio sua apnéia do sono que durou décadas.
          Os tanques e as filas ordenadas, a sociedade em seu lugar: essa idéia comecou a me machucar um pouco também. E doía sempre e tantas vezes depois, quando ouvia pessoas de ar triunfante, sedentas em sentirem-se corajosas por exibir sua crueldade, dizerem na frente de meu pai que a ditadura havia sido absolutamente pacífica. Ainda assim, nunca ouvi meu pai responder nada a essas pessoas.
         Na adolescência, também odiei meu pai, porque o achava muito grande: como poderia um dia sequer alcançá-lo? Meu pai, que tentava olhar a humanidade até das pessoas que o condenavam. Meu pai, que nunca me ensinou a odiar. Se meu pai me veio aos poucos, é também porque me era difícil olhá-lo diretamente nos olhos. Tinha o defeito da sinceridade. Mais difícil quando comecei a entender o motivo pelo qual algumas pessoas o ofendiam. Também compreendi por que ele nunca mais choraria de novo. Mas nunca aprendi a aceitar.
Eu, mas não meu pai, que apenas dizia: “Elas (as pessoas, todas elas e cada uma) estão em suas lutas...”
      Meu pai sempre seguia em frente. É isso o que mais guardo dele. Ele caía e se levantava como se nunca tivesse caído. Ele também tinha sua lealdade simples: precisava acreditar na solidariedade. Como ideal e profissão de fé. Precisava disso para poder continuar buscando livremente um sentido para a bagunça da existência. Uma forma de resistir à força impassível e cruel que contorna filas de jovens deitados apenas pelo prazer que isso traz.
        Meu pai tem muitos defeitos, eu bem sei. Quem não os tem?  Se escrevo sobre ele, é, na verdade, para homenagear todos os homens e mulheres como ele. Aqueles homens e mulheres que, independentemente do espectro político a que pertencem, independentemente das ideias que defendem, acreditam que nunca devem roubar a humanidade alheia. Nunca devem quebrar as pessoas, pisando com désdem na luta de uma vida toda. Que, em todas as suas batalhas e resistências, silenciosas ou no megafone junto à multidão, nunca gargalharam de um homem no chão, nunca apostaram no nosso pior. Que, assim como meu pai, ouvem absurdos calados e se desfazem do ressentimento assim como se desfazem de roupas pesadas após um dia extenuante de trabalho. Que souberam amadurecer, entender a distância entre o objetivo almejado e o mundo possível, sem nunca se desviarem dos propósitos nobres que os conduzem. Vocês estão em todos os lugares dessa sociedade, em todos os Poderes, partidos e grupos. Mas estão vivendo uma fase difícil, eu sei.
      Também, por isso, escrevo. Percebi que homens e mulheres que representam o oposto do que vocês representam estão prestes a tomar conta do país. Novamente, não me refiro a um partido, grupo ou Poder específico. Eles estão em todos os lugares, interditando o debate nacional, apostando nas nossas mazelas, ganhando corações e mentes. Muitos, nessa hora, começam, novamente, a culpar meu pai, a culpar homens e mulheres como ele. “Vocês poderiam ter feito mais!”, eles bradam. “Vocês são ingênuos!, eles insistem. “Vocês são desonestos!” , eles babam. “Vocês abandonaram a luta!”, eles continuam. Eu permito-me, nesse ato de condescendência, discordar de todos eles. A minha discordância é  a razão desse texto existir. A minha discordância  e meu amor pelo meu pai.
      Também eu tive pesadelos, noites mal dormidas e coração sobressaltado quando, ainda em 2013, percebi que a irracionalidade e o ódio iam tomar conta do país por um tempo. Agora não tenho mais. Eu entendi que, ainda que leve alguns séculos (eu provavelmente não estarei vivo para ver), o tempo desses homens e mulheres cheios de certezas e rancor está acabando. O fato é que eles têm o dom de conservar cadávares ainda por muito tempo além do momento de enterrá-los. Eu ouvi coisas demais calado, bem que tentei me tornar ressentido e, com certeza, comecei a envelhecer mais rápido do que gostaria. Por isso, digo, num extremo (perdoem-me por isso) ato de egolatria e narcisismo, que tenho a convicção plena de que o tempo de homens e mulheres como meu pai está apenas começando. É que as auroras costumam ser confusas mesmo e, às vezes, as madrugadas tendem a parecer mais longas do que deveriam.