Tinha
oito anos quando ouvi meu pai sentenciar pela primeira vez: “Brasília é uma
festa.” Corriam imagens do desfile de sete de setembro pela televisão e eu,
obviamente, achei que aquelas palavras referiam-se unicamente à celebração
cívica. Até então, também pouco sabia da história da cidade, de sua construção
suada no coração geográfico do país, estimulada por devaneios febris e
otimistas de concreto armado.
Veja bem, caro leitor, meu pai
sempre falava de Brasília. Parecia acreditar nela, meio daquela forma que o interlocutor
de Don Vitor Corleone diz acreditar na América, no início da parte um de “O
Poderoso Chefão”. Meu pai mudara-se para lá com dezessete anos e pouco dinheiro
no bolso. Voltou para cá com menos ainda, mas com um diploma e um paletó de
trabalhador honesto. Se minha Brasília, aquela na qual nunca pisei, sobrevivia
em minha mente apenas a partir da antítese “lá” e “cá”, meu pai era o agente
que a promovia, o esforço constante em agregar os extremos da contradição.
Para além de meu pai, Brasília sempre
me chegava a partir de epítetos jornalísticos ou históricos. Ora “Brasília era
o futuro” ou “A crença otimista num Brasil que vai para frente”, ora era também
“Um pesadelo de cimento”, “Uma loucura inconseqüente” e “A cidade da corrupção,
com um dos mais altos custos de vida do país.”
Também adolesci e passei a sonhar
com o longe. Por conseguinte, também sonhei com Brasília e criei minha própria
visão lírica da urbe fantástica. Brasília tinha de ser como “Tropicália” de
fato, com todas as nossas contradições de modernidade e atraso. E ouvia sobre
Niemeyer, Lúcio Costa, curvas de concreto e como elas eram a síntese perfeita entre
peso e leveza, suavidade e opressão.
Não demorou também para que eu
projetasse em Brasília um pouco do ódio que todo jovem tem do pai. Comecei a
enxergar naquele projeto de cidade um ridículo enorme, veja bem, aquele nosso
desejo de parecer civilizado segundo padrões ocidentais. Sim, a marcha
civilizatória enquanto pretensão risível também era a Brasília de minha
adolescência.
O tempo me faria relevar esse aspecto: entendi
que não podia julgar os protagonistas daquele passado recente com os valores da
minha geração. Só os homens da década de cinqüenta entendem o espírito daqueles
anos frenéticos, cujo maior fruto é a “cidade dos chapadões”, esse elefante
branco selvagem que é, ao mesmo tempo, elefante de circo.
Nem
tudo isso me fez entender as palavras de meu pai. Fui entendê-las apenas
recentemente, quando assistia aos desfiles das escolas de samba pela televisão,
com todas aquelas alegorias e sonhos antigos encarnados num devaneio que finda
em quatro dias. Minha irmã exclamou: “O Rio é uma festa.” Pronto, foi nesse
infinitesimal momento, prezado leitor, que o sentido mais profundo das palavras
de meu pai revelou-se para mim.
Brasília é o nosso verdadeiro
carnaval, a encarnação de todas as nossas aspirações de país, de todos os
vícios históricos que não nos deixam concretizá-las. É um parêntesis, um entreposto
geográfico cravado no interior do território, ao mesmo tempo parte dele, ao
mesmo tempo um estrangeiro. É a nossa mais bem acabada alegoria, a nossa
verdadeira festa de escapismo, mas também nossos desejos mais profundos e nossas
melhores intenções.
Brasília é uma festa e eu estou pronto para
amadurecer e me libertar de meu pai. Sim, libertar-me, pois sei que naquela
cidade está tudo o que queremos ser e tudo que queremos deixar para trás,
embora não saibamos quando e se isso vai acontecer. Parece que algo deu certo
no plano todo: Brasília é, mesmo que não daquela forma inicialmente planejada,
a minha e a nossa verdadeira emancipação.
(Crônica classificada em sétimo lugar no Concurso "Brasília é uma festa", promovido pela Fundação de Apoio à Cultura do Distrito Federal - FAC - DF)