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Apenas um pouco do que escrevo. Gotas da pretensão que assombra a juventude: a maldita idade lírica, da extrema eloquência com a grande arrogância. Resta apenas desorientação.

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domingo, 17 de fevereiro de 2013

Brasília é uma festa (de debutantes)


       Tinha oito anos quando ouvi meu pai sentenciar pela primeira vez: “Brasília é uma festa.” Corriam imagens do desfile de sete de setembro pela televisão e eu, obviamente, achei que aquelas palavras referiam-se unicamente à celebração cívica. Até então, também pouco sabia da história da cidade, de sua construção suada no coração geográfico do país, estimulada por devaneios febris e otimistas de concreto armado.
            Veja bem, caro leitor, meu pai sempre falava de Brasília. Parecia acreditar nela, meio daquela forma que o interlocutor de Don Vitor Corleone diz acreditar na América, no início da parte um de “O Poderoso Chefão”. Meu pai mudara-se para lá com dezessete anos e pouco dinheiro no bolso. Voltou para cá com menos ainda, mas com um diploma e um paletó de trabalhador honesto. Se minha Brasília, aquela na qual nunca pisei, sobrevivia em minha mente apenas a partir da antítese “lá” e “cá”, meu pai era o agente que a promovia, o esforço constante em agregar os extremos da contradição.
            Para além de meu pai, Brasília sempre me chegava a partir de epítetos jornalísticos ou históricos. Ora “Brasília era o futuro” ou “A crença otimista num Brasil que vai para frente”, ora era também “Um pesadelo de cimento”, “Uma loucura inconseqüente” e “A cidade da corrupção, com um dos mais altos custos de vida do país.”
            Também adolesci e passei a sonhar com o longe. Por conseguinte, também sonhei com Brasília e criei minha própria visão lírica da urbe fantástica. Brasília tinha de ser como “Tropicália” de fato, com todas as nossas contradições de modernidade e atraso. E ouvia sobre Niemeyer, Lúcio Costa, curvas de concreto e como elas eram a síntese perfeita entre peso e leveza, suavidade e opressão.
Não demorou também para que eu projetasse em Brasília um pouco do ódio que todo jovem tem do pai. Comecei a enxergar naquele projeto de cidade um ridículo enorme, veja bem, aquele nosso desejo de parecer civilizado segundo padrões ocidentais. Sim, a marcha civilizatória enquanto pretensão risível também era a Brasília de minha adolescência.
O tempo me faria relevar esse aspecto: entendi que não podia julgar os protagonistas daquele passado recente com os valores da minha geração. Só os homens da década de cinqüenta entendem o espírito daqueles anos frenéticos, cujo maior fruto é a “cidade dos chapadões”, esse elefante branco selvagem que é, ao mesmo tempo, elefante de circo.
            Nem tudo isso me fez entender as palavras de meu pai. Fui entendê-las apenas recentemente, quando assistia aos desfiles das escolas de samba pela televisão, com todas aquelas alegorias e sonhos antigos encarnados num devaneio que finda em quatro dias. Minha irmã exclamou: “O Rio é uma festa.” Pronto, foi nesse infinitesimal momento, prezado leitor, que o sentido mais profundo das palavras de meu pai revelou-se para mim.
            Brasília é o nosso verdadeiro carnaval, a encarnação de todas as nossas aspirações de país, de todos os vícios históricos que não nos deixam concretizá-las. É um parêntesis, um entreposto geográfico cravado no interior do território, ao mesmo tempo parte dele, ao mesmo tempo um estrangeiro. É a nossa mais bem acabada alegoria, a nossa verdadeira festa de escapismo, mas também nossos desejos mais profundos e nossas melhores intenções.
 Brasília é uma festa e eu estou pronto para amadurecer e me libertar de meu pai. Sim, libertar-me, pois sei que naquela cidade está tudo o que queremos ser e tudo que queremos deixar para trás, embora não saibamos quando e se isso vai acontecer. Parece que algo deu certo no plano todo: Brasília é, mesmo que não daquela forma inicialmente planejada, a minha e a nossa verdadeira emancipação.


(Crônica classificada em sétimo lugar no Concurso "Brasília é uma festa", promovido pela Fundação de Apoio à Cultura do Distrito Federal  - FAC - DF)