Alguma utilidade?

Apenas um pouco do que escrevo. Gotas da pretensão que assombra a juventude: a maldita idade lírica, da extrema eloquência com a grande arrogância. Resta apenas desorientação.

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sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Nascido em 1991

Nascido em 1991, cheirava tédio da cabeça aos pés. Era aquele cheiro ocre das coisas que vão e vêm pré-determinadas, já ditas, mas capazes de se esconder entre cochichos, bocas de lado e sinais sutis em festas de natal, almoços familiares e na praça em que sempre se bebe com os amigos. Vidas que se chocam e se abastecem, mas não! Não para os nascidos em 1991, que só conhecem o medo da confiança coletiva. O medo e o cinismo. O cinismo que não põe a mesa nos almoços familiares e nas festas de natal, nem enche os copos nas bebedeiras de praça.
Nascido em 1991, adorava dias nublados e músicas que só são ouvidas, cantadas e até mesmo compostas em dias nublados. Porque dias nublados anunciam sempre a grande tempestade que aqui, abaixo dos trópicos, geralmente nunca vem. Na verdade, nascido em 1991, sabia sempre de como a vida é vazia quando se está falando sobre o tempo.
Mas a propósito disso, nas raras vezes em que a chuva vinha, tinha, assim como todo nascido em 1991, medo dela e dos ruídos que ela produzia na TV. Lembravam a ele sempre das antenas no espaço profundo retransmitindo sinais num universo de vácuo e imensidão. Era da solidão das gentes que esses ruídos falavam. Sobretudo nascido em 1991, não queria crescer num mundo sem grandes ideais para ocupar a mente nos domingos ao fim da tarde, quando o sol se põe e existe uma dor tão pungente dentro da gente que a gente se entope com ”talk shows” cheios de ruídos do espaço profundo e, sem muros para nos conter, só queremos muito é morrer.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

"Se lembra do futuro que a gente combinou?"

Abriu com calma o envelope. Dentro, apenas um CD. Ficou algumas horas sentado tentando entender a razão daquilo. Depois de tantos anos, sempre nesse precipitar-se vertiginoso, nesse espaço de idas e vindas que só anunciam e não concretizam, de repente, ali estava uma prova material de que ela ainda se lembrava. Antes de ouvir, entregou-se à memória.
Algumas coisas só se entendem do começo ao fim. Outras, destacando-se do todo. Às vezes, um misto dos dois. Veio da adolescência. Talvez seja um bom ponto de partida. Só se lembrava de ter notado que ela era linda. E também que usava uma camiseta dos "Beatles". E por ser a garota linda que tinha uma esquisitice em comum com ele, achou por bem falar “oi”. Já sabia, até antes disso, que ia se apaixonar.
Os primeiros meses foram para planejar a vida. Não que o presente não fosse bom, mas urgia combinar o futuro. Não podiam crescer naquele lugar onde o excesso de decoro nauseava e o maior defeito das pessoas era o perfeccionismo. Ele até entendia porque odiava as boas aparências e os indivíduos adequados, ele mesmo a expressão da inadequação e da insegurança. O que tanto fascinava-o era que ela também odiasse: ela, tão obscenamente bela e bem-aceita.
Planejar também embriaga, mas era assim: a vida correria para as metrpópoles, ambos teriam uma profissão de importante função social e fariam algo pelo mundo. Nossa, como ririam da exitência medíocre das pessoas que discutem no almoço de domingo qual é o melhor frango assado da cidade.
Claro que deu tudo errado. Aliás, até hoje ele não suporta ouvir “Como Nossos Pais”. Fizera uma volta tão grande para fugir do futuro determinado, justo para voltar ali. Ela odiou a rotina das metrópoles e começou a dizer que o amor deles só servia para períodos de planejamento. Era impossível viver com alguém tão pouco prático.Retornou à cidade-natal e se casou com seu vizinho de infância, engenheiro, estável, encarnação das coisas que estão em seu devido lugar.
Quanto a ele, o amante abandonado, acabou desempregado aos vinte cinco. Teve de aceitar um bico na empresa do pai. Casou-se com uma moça dócil, ela mesma a encarnação da invisibilidade. Se era para não viver o que sonhara, pelo menos viveria sem ser visto e sem se ver.
Liberto das divagações, podia escutar as próprias batidas quando saíram os primeiros acordes do rádio. Não conteve o choro: até enxergava a nostalgia emitida pelos primeiros versos de “Maninha”, de Chico Buarque. De repente, ele estava ouvindo sua amada lhe perguntar assustada na boca da noite: “Se lembra do futuro que a gente combinou?” Mas eles não eram nem se sentiam mais crianças.

domingo, 4 de setembro de 2011

A Questão insolúvel


Por errar caminhos, perdi-me de mim. E enquanto observo a realidade congelada dos dias que se arrastam apenas com aridez e tédio empoeirado, penso de novo em tudo que não foi. A vida que não foi é tão sublime e bela, que sempre decido vivê-la. Por vivê-la demais, cheguei aqui. Nunca estive tão longe dela. Nem de mim.
Meus tempos de “novo tempo”, de crer que o presente é apenas o ensaio para o grandiloqüente espetáculo que ainda virá, estão se esgotando. E aí crescer não é expectativa, mas enfado doloroso.
Com a vista turva, caminho solene e trôpego por entre gentes e lugares com os quais não irmano. Há rostos distorcidos, mão avulsas gesticulando, espaços de inocência que se volatilizam e nuvens pesadas de dor. Soberana, a dor impera. E dissolve: eu e a vida que tenho. Pobre de mim, ainda resta a vida que nunca terei, intacta e fulgurante, a zombar do homem que não soube e nunca saberá construí-la.
Vou alugá-la por um tempo, alugar o eu mesmo que perdi. Quem sabe assim, minha cota mensal de redenção compre provisoriamente um pouco dos planos que fiz, refiz e sonhei para mim. Mas bem, talvez “comprar” não seja um bom verbo. Alugar não é comprar e locatário é proprietário incompleto. Assim, sigo com a vida alugada condenada à incompletude perpétua? Ou escolho o não? Não apostar no planejado, aceitar o “tudo fora de lugar” e arrastar os anos vindouros numa vida clandestina, tão alienada de mim mesmo? Eis a questão insolúvel.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Sobre aquele espaço de limbo

Parafraseando Zeca Baleiro, estava achando a vida tão chata. E só. Mais solitário que um elevador, agora, ao menos, posso torcer para enguiçar no mesmo andar que você. Não, você não entende. Eu não entendo. A minha vida no meio. E um enorme medo de que o futuro escorra pelos cantos sinuosos de um presente abarrotado de tudo que não foi.
E nesse espaço de limbo, sobra tédio. No café da manhã, no almoço. E um pouco de você. Para curar o tédio, para tirá-lo da mesa e trocá-lo pela sobremesa. Sim, passar direto à sobremesa e fugir da rotina.
Assim, mudo a “playlist”, abandono Zeca Baleiro e coloco Titãs. E, enquanto não sei para onde vou e aonde tudo isso vai dar, pelo menos posso cantar os primeiros versos de “Pra dizer adeus”. Sim, “você apareceu do nada” e, sim, “você mexeu demais comigo.” Em tempos de muitos registros e escassez de memórias, é das poucas verdades que sei.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Sobre humanidade e barreiras

Ninguém mais se lembrava como foram erguidos. Alguns diziam que sempre existiram e a sina do ser humano era conformar-se com a sua presença. E faziam imensa propaganda dessa bandeira a quatro cantos. Outros queriam derrubá-los a qualquer custo, convictos de que não era lógico que vivessem entre barreiras. Por fim, a imensa maioria ignorava a presença deles, conquanto suas sombras colossais ofuscassem os sujeitos e turvassem os caminhos.
Tudo começou com o grande medo. Em cada cidade, vila, aldeia, casa...em cada ser, surgiu a suspeita. Não poderia estar tudo bem. Em algum lugar dentro de si, todos estavam convictos de que a felicidade era tão precária e efêmera quanto insignificante para outrem e, portanto, se havia um estado de calma, ele logo deveria acabar. A partir daí cresceram os boatos sobre a tenebrosa ameaça externa. Era inominável, inclassificável e incompreensível, contudo viria de muito longe engolfar para sempre toda a alegria entre os humanos.
Então iniciaram-se os conflituosos debates. Cada qual paralisado pelo medo, deixava guiar-se pelo instinto de sobrevivência na busca de uma solução. E as reuniões entre os grandes líderes resultaram numa conclusão tão onerosa quanto ridícula frente a um problema desconhecido: o melhor era erguer muros, enormes e rijos. Se era uma ameaça externa, não perpetuar-se-ia entre eles.
E assim, em meio ao medo, nuvens de concreto, o peso das vigas de aço e a náusea provocada pelo desconhecido, levantaram-se os alicerces dos primeiros muros. No início, todos deliraram de alívio, pois parecia a solução correta para o grande medo. Contudo, com o tempo percebeu-se que ele ainda estava ali, e nem a imagem dos muros, tornando-se cada vez mais imponentes e assustadores, era capaz de expulsá-lo.
Realizaram-se novas convenções e não adotou-se uma mudança de postura. Assim, geração seguida de geração empenhava-se na construção de novas muralhas e na elevação das antigas. A prática foi tornando-se milenar e tradicional, de forma que ninguém mais sabia que surgira para combater o grande medo, já plenamente assentado e onipresente em cada canto do planeta. Logo, tal prática já não era mais condicionada pela razão e acomodou-se no inconsciente coletivo da humanidade, tornando-se contínua e imperceptível. Muros e barreiras surgiam em cada ação, mas a maioria das pessoas ia perdendo a capacidade de perceber tal fato.
Alguns sábios, nos vãos perdidos entre os volumes da história, tentaram formular outra hipótese: o grande medo não vinha de fora, e sim de dentro do ser humano, o que confirmaria a inutilidade dos muros. Gritavam desesperadamente para abrirem os olhos, pois um dia aquela fortaleza de concreto e vigas de aço, erguida sob os signos do tédio, da náusea e do medo, desabaria sobre todos, sepultando um mesquinho sonho de grandeza. Contudo, todos esses sábios, sem exceção, foram perseguidos e calados. A grande maioria restante dos humanos não queria aceitar que sua única habilidade nata, a de criar divisões, surgiu de uma conclusão errada e perpetuou-se por milênios sem nenhuma utilidade prática.
No fim dos tempos, não sobrará ninguém para atestar a lucidez dos sábios. Mas sim, a fortaleza irá desabar. E aqueles que a defendem ou ignoram, arruinar-se-ão entre suas ruínas. E a nuvem de concreto e o barulho das vigas de aço caindo levarão a parcela restante a um último instante de caos silencioso ante o deslumbramento que precede o fim. E sob as os restos de todos os grandes muros, estará enterrado para sempre o último resquício de humanidade, finalmente livre do grande fardo e do grande medo.

Sobre a Cidade Maravilhosa

E no mar estava escrita uma cidade.” Depois Drummond, nada mais deveria ser dito. Mas a gente tem mania de dizer o que não deve, então completo: e depois do Rio, nenhuma outra foi escrita. Não havia traçados melhores. E o mar se impôs, irresoluto em sua completude. Dele é a matéria de que é feita toda a Cidade Maravilhosa.
De mar é o burburinho que se eleva das ruas, a conversa quente e abafada no centro pulsante. Tem cheiro de mar a história marcada em cada um dos monumentos históricos.
De mar é a favela que se acende à noite, irregular como o formato das ondas: sempre indiferentes e magnetizadas pela praia. De mar é o jeitinho carioca, embrião do brasileiro, vago, manhoso e meio traiçoeiro, como o movimento das marés.
De mar é o calçadão de Copacabana, mar que invade o concreto, está nas havaianas e bermudas. Ipanema, suas muitas garotas, seus hotéis também: inacessíveis e desejados como o mar. De mar é o céu alaranjado avistado no mirante do Leblon, o Pão de Açúcar sendo engolfado pela escuridão da noite. E o Corcovado, solitário. Como o mar.
A Barra, sua classe média meio insegura: tem o mar na barriga. Tem mar nessa multidão de múltiplas origens, furiosa e arrebatadora.
De mar é o Cristo, braços abertos, decidido a abraçar o próprio mar, certo da sua impotência ante a hercúlea tarefa. E se cala. Cristo e o mar. Também não acreditam na beleza do que fizeram. Preferem não falar. E a serenidade de seu silêncio é a mais expressiva descrição da Cidade Maravilhosa.

domingo, 13 de março de 2011

Sobre Ausência

Tratava-se daquilo que num instante estava ali e depois não estava mais. E se não estava, também se iam os planos e a rotina: sem cinema aos domingos ou viagem para a Irlanda daqui a cinco anos. Ele, só ele, apenas ele, estupidamente ele, também não queria mais ir para a Irlanda. Restava a invenção burguesa do amor-lacuna, insuficiência permanente. Maldito quebra-cabeça de duas peças que não vende em qualquer um e noventa e nove barato...
Ele nem sabia o porquê. Tudo na sua vida estacionado. Aí achou algo para completar a frase que ouvira aos cinco anos, quando seu avô morrera: “E se nada mais der certo...”
Desde então, resumira tudo ao exercício de terminá-la. E sempre encontrava alguma obsessão, estranho objeto do desejo que fica aí nesse lugar. Romantismo demais, Machado de Assis de menos. E ela estava ali: “E se nada mais der certo, ainda existem nós dois.” Que piegas...
Ela tinha olhos grandes, gostava de dizer que eram como os de Capitu: “de ressaca...” É, talvez o problema não fosse Machado de Assis de menos....fossem planos demais. Planos, o começo do fim. É como se escapa do presente sofrido, da rotina rolo-compressor: pensando no futuro. E ninguém está sozinho no futuro. Não, é quase como se a memória fosse conformada pelo ideal dos álbuns de casamento: grupos de pessoas sorrindo, ele e ela sorrindo....camadas e camadas plásticas demais para revestirem um frágil suporte de real.
E aí, é claro, viver no espaço da ausência. Não, isso ninguém lhe ensinara: nem os românticos, nem os álbuns de casamento. Convenceram-lhe que há o vazio, passível de ser preenchido. Mas e se, depois de experimentar a ilusão de preenchê-lo, souber que, a partir de então, será sempre e até o fim dos dias, apenas o vazio? Ele tentou começar o trabalho reverso: aceitar que isso é uma mentira, que há muitas peças e que há quebra-cabeças em qualquer um e noventa e nove barato.
Até trocar algumas palavras com ela (outra) na sala de espera do médico. “E se nada mais der certo, ainda virei no médico toda semana.” E há mais da falsa sensação de completude, ausência perpétua mascarada em enganosos tons de rebuscamento. Sabia disso, mas preferia errar sempre e mesmo assim, conformado a perder-se novamente naqueles olhos de ressaca...

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

"Faz parte do meu show"

“Faz parte do meu show”. Foram essas as últimas palavras dela antes de bater a porta, deixando a caixa com a coleção de CD’s no chão. Sim, porque sempre tem aquela maldita propriedade conjunta para materializar a ausência. E ele que achou que o fim nunca viria. E que se viesse, ao menos seria mais solene.
De qualquer forma, acabou assim: acabando. Ela e sua inquietação cansaram. E ele, ajoelhado, pedindo que não fizesse isso, ele sabia que gostava mais dela do que ela dele, mas não se importava. Mendigar migalhas de atenção, tudo OK: crescera ouvindo músicas de rock ultra-românticas e lendo poetas franceses.
Óbvio que ela nem deu ouvidos. Só disse que ia sumir e como é que é mesmo? “Faz parte do meu show”. Isso, que iria sumir porque fazia parte do show dela. E ele não entendeu como o show poderia acontecer na ausência da artista. Talvez por isso tenha sempre sofrido por amor. Por não entender.
E depois só começou a chorar. Como criança, como bebê. Pegou um dos CD’s na caixa. Olhou a cara de Chico Buarque no encarte. Quis rasgá-lo. No fim, talvez nem gostasse tanto assim dele. Começara a ouvir compulsivamente por causa dela.
Mudara tanto com a relação. Só ele. E ela apenas vivia dizendo que o mundo que se explodisse, que não ligava. Bastavam ela e o Chico e ela e seus filmes do Leste europeu que ninguém assiste e ela e sua família estranha e ela e seus cachorros e ela e suas ânsias. Era muito ela.
Ele gostava. No fim, ele morria de medo do resto do mundo. Ela, fingindo não ligar ou não ligando de fato, preenchia tudo. Tudo bem que não sobrasse nada para ele. Não era acostumado à idéia de habitar espaços dos outros, embora os outros sempre habitassem os seus.
No fim, Chico e ela ganharam. Pôs para tocar “Eu te amo”, enquanto reposicionava os velhos e empoeirados discos na estante. E quando soaram os primeiros versos daquela ladainha auto-piedosa sobre a fusão irreversível com o ser amado, ficou mais irritado. Quase insano. Depois, de novo, apenas triste. Voltou a chorar.
Foram meses desse jeito. Bebia com os amigos, reclamava que ela não o queria. E que tudo lembrava ela: os cachorros, a família, as ânsias e até os filmes do Leste europeu que só ela via e que depois ele começou a assistir também. Público: duas pessoas. Ela, por ser única e diferente. Ele, por ser inflexível em sua devoção. O marketing até que não era ruim.
Tempos depois, ela acabou. Simples assim. Sem entender por que, ele acordou livre. Ele. Apenas ele. Um pouco diferente, para falar a verdade. Gostava de algumas coisas que ela o ensinara a gostar. Ia a alguns lugares que descobriram juntos. E tinha cachorros. Mas tudo isso existia por si só: ela não habitava mais cada recanto da vida dele.
É num desses dias comuns que, tarde da noite, a campainha toca, o som quase abafado pela música alta. Ele abre a porta com cautela, quando uma conhecida voz invade a casa e se instala de novo: nos cachorros, nos velhos CD’s, nos filmes europeus e até nos versos que saíam do rádio. Suas primeiras palavras: “Faz parte do meu show.”

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Tetro ou sobre a ôpera familiar

É novamente sobre família o mais recente filme de Francis Ford Copolla, diretor dos consagrados “O Poderoso Chefão” e “Apocalipse Now”. Mas não é só sobre isso. Ambientado em uma Buenos Aires de aura boêmia, síntese de qualquer lugar num limbo entre arte e escape, o filme, denominado "Tetro", começa expondo a relação entre dois irmãos e segue expandindo-se num crescente operístico que ganha aura de saga. Ângelo é o irmão rebelde, foge a todo custo do progenitor. Mas toda esta ausência é o constante anúncio de que a figura paterna transborda e resvala, preenchendo cada poro de uma vida que parece suspensa até segunda ordem. Talvez até a morte do pai. Freud aqui grita, assusta, espanta: é a principal companhia de Ângelo em cada noite mal dormida.
Então chega Benjamim, o irmão mais novo. O irmão que não sabe da origem. Para Ângelo, há um pai que sempre parecerá excesso. Para Benjamin, uma falta. E a escrita de Ângelo, com suas linhas em código, é o fiel desta balança desequilibrada: ponte para uma verdade que parece obscena demais para ser dita. E pesada demais para ser encoberta.
E todo tom operístico que ronda o filme serve de analogia para a condição de uma família que desmonta. “Rivalidade”, dirá Bejamin, em um dos quadros finais: eis a razão da ruína. Alguém sempre quer ser maestro e coordenar todos os acordes.
Mas Copolla parece querer ensinar que a busca pela harmonia, fundamental nos conjuntos musicais, não tem nada a ver com famílias. São as dissonâncias que garantem o frágil equilíbrio. Dissonância marcada nas lembranças coloridas, em contraste com a aridez do presente em tons de cinza.
A fotografia em preto e branco é de uma beleza absurda. Tão absurda que chega a doer.
A certeza que sobra deve ser colhida com cautela. Ela ensina que há muito estampado pela família em cada indivíduo. No início e no fim. Uma espécie de herança coletiva a ser digerida sozinha. Deve ser tratada como um meio segredo. Algo sobre o que se entende um pouco, mas prefere-se não explicar. Da ordem da confissão silenciosa. Como a grande arte. Como as luzes brancas que fascinam os dois irmãos, mas para as quais nunca devem olhar diretamente.
Acusado de pretensioso pela crítica, Tetro me pareceu cinema de qualidade como há muito não via.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Nem eu sei

Amor, encontro você na próxima estação. Poderei dizer a mesma frase até o resto da minha vida? É muda toda essa aridez que naufraga as utopias. Em breve acabarão as estações. Não haverá mais limbo, não entenderei de permanência.
Amor, vejo você lá. Lá, onde restam sonhos, memórias e tantas estações quantas forem necessárias para prolongar infinitamente esta inexplicável dinâmica de lançar-se ao nada.
E de tudo que ficou, resta bem pouco. É o pouco das migalhas, do abaixar-se e espremer-se entre os vãos. Que caiba no vazio inquieto dos espaços ociosos. Que cure este pesado silêncio de inadequação. Que cale toda esta prosa da prolixidade. Que se dissolva no caos.

Sobre o derradeiro momento

E era o derradeiro momento. Postado na cama, odiava se descobrir sozinho. Sempre temera que tudo acabasse no silêncio. Era até irônico que fosse surdo e aquele silêncio absoluto o incomodasse. Mas não era o silêncio que antecede o instante de febre, a ânsia do mundo ou o desconhecido atroz. Era o silêncio que precede o nada absoluto, a angústia suprema da humanidade: a morte.
E se estava ali imóvel no leito de hospital, sozinho na escuridão irresoluta da noite, sabia que havia um motivo. Pouco cabia de sua vida ali, de tudo que não fizera, daquilo que não fora ou daquilo que um dia tolamente acreditou ser. Tudo era pequeno, ínfimo, quando entendia o significado magnânimo de findar. Morrer agora era questão de pouco tempo.
Há semanas que estava na cama de hospital, desde o acidente que lhe tirara a audição. Com o tempo que passava, sentia a morte chegar vagarosa, sorrateiramente. Era amargo perceber que entendia muito melhor o mundo quando o separava de seus ruídos sem significado, de seus gritos vãos. O silêncio inerte dos dias que se seguiram alegravam-lhe na mesma proporção que o desesperavam. No momento em que descobria o quanto foram irrisórios seus objetivos até ali, assegurava-se que morreria e não teria tempo de refazê-los .
E ria da ciência, da psicologia, das artes .... de todo esse sonho de grandeza do ser humano, essa tentativa de provar-se mais complexo, incrível e multifacetado que realmente é. Desse delírio chamado sociedade, que oculta nossa pequenez sob a silhueta da razão. No fim, a morte chega para fundir-nos a escuridão noturna e reduzir-nos a mais um ruído que não penetra nos ouvidos surdos de outrem. Mais uma vez, o silêncio.
E pouco queria entender do que significou sua existência. Fora cientista, criara métodos para ir tão longe, fórmulas que dariam ao homem o universo. E estava ali, naquele hospital, em aspecto tão deplorável. Onde está esse sonho de grandeza se, no fim das contas, somos todos iguais perante a “indesejada das gentes”? A morte iguala a todos, muito mais do que a própria vida. A morte dissolve os homens.
A morte é o abandono supremo, a entrega irreversível, o medo tenebroso, a coragem hercúlea, o choro mais prolongado e o pesadelo mais delirante que todo ser humano um dia vai encarar. Ele a encararia agora e, não obstante todas as condições adversas, a morte também seria seu único momento de suprema paz. Talvez por ser a primeira vez que se sentia apenas humano, nem mais, nem menos. Estupidamente humano, esse era seu ultimo sentimento, tão prazeroso quanto se pode imaginar, no derradeiro momento.