Alguma utilidade?

Apenas um pouco do que escrevo. Gotas da pretensão que assombra a juventude: a maldita idade lírica, da extrema eloquência com a grande arrogância. Resta apenas desorientação.

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terça-feira, 14 de junho de 2011

Sobre humanidade e barreiras

Ninguém mais se lembrava como foram erguidos. Alguns diziam que sempre existiram e a sina do ser humano era conformar-se com a sua presença. E faziam imensa propaganda dessa bandeira a quatro cantos. Outros queriam derrubá-los a qualquer custo, convictos de que não era lógico que vivessem entre barreiras. Por fim, a imensa maioria ignorava a presença deles, conquanto suas sombras colossais ofuscassem os sujeitos e turvassem os caminhos.
Tudo começou com o grande medo. Em cada cidade, vila, aldeia, casa...em cada ser, surgiu a suspeita. Não poderia estar tudo bem. Em algum lugar dentro de si, todos estavam convictos de que a felicidade era tão precária e efêmera quanto insignificante para outrem e, portanto, se havia um estado de calma, ele logo deveria acabar. A partir daí cresceram os boatos sobre a tenebrosa ameaça externa. Era inominável, inclassificável e incompreensível, contudo viria de muito longe engolfar para sempre toda a alegria entre os humanos.
Então iniciaram-se os conflituosos debates. Cada qual paralisado pelo medo, deixava guiar-se pelo instinto de sobrevivência na busca de uma solução. E as reuniões entre os grandes líderes resultaram numa conclusão tão onerosa quanto ridícula frente a um problema desconhecido: o melhor era erguer muros, enormes e rijos. Se era uma ameaça externa, não perpetuar-se-ia entre eles.
E assim, em meio ao medo, nuvens de concreto, o peso das vigas de aço e a náusea provocada pelo desconhecido, levantaram-se os alicerces dos primeiros muros. No início, todos deliraram de alívio, pois parecia a solução correta para o grande medo. Contudo, com o tempo percebeu-se que ele ainda estava ali, e nem a imagem dos muros, tornando-se cada vez mais imponentes e assustadores, era capaz de expulsá-lo.
Realizaram-se novas convenções e não adotou-se uma mudança de postura. Assim, geração seguida de geração empenhava-se na construção de novas muralhas e na elevação das antigas. A prática foi tornando-se milenar e tradicional, de forma que ninguém mais sabia que surgira para combater o grande medo, já plenamente assentado e onipresente em cada canto do planeta. Logo, tal prática já não era mais condicionada pela razão e acomodou-se no inconsciente coletivo da humanidade, tornando-se contínua e imperceptível. Muros e barreiras surgiam em cada ação, mas a maioria das pessoas ia perdendo a capacidade de perceber tal fato.
Alguns sábios, nos vãos perdidos entre os volumes da história, tentaram formular outra hipótese: o grande medo não vinha de fora, e sim de dentro do ser humano, o que confirmaria a inutilidade dos muros. Gritavam desesperadamente para abrirem os olhos, pois um dia aquela fortaleza de concreto e vigas de aço, erguida sob os signos do tédio, da náusea e do medo, desabaria sobre todos, sepultando um mesquinho sonho de grandeza. Contudo, todos esses sábios, sem exceção, foram perseguidos e calados. A grande maioria restante dos humanos não queria aceitar que sua única habilidade nata, a de criar divisões, surgiu de uma conclusão errada e perpetuou-se por milênios sem nenhuma utilidade prática.
No fim dos tempos, não sobrará ninguém para atestar a lucidez dos sábios. Mas sim, a fortaleza irá desabar. E aqueles que a defendem ou ignoram, arruinar-se-ão entre suas ruínas. E a nuvem de concreto e o barulho das vigas de aço caindo levarão a parcela restante a um último instante de caos silencioso ante o deslumbramento que precede o fim. E sob as os restos de todos os grandes muros, estará enterrado para sempre o último resquício de humanidade, finalmente livre do grande fardo e do grande medo.

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