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Apenas um pouco do que escrevo. Gotas da pretensão que assombra a juventude: a maldita idade lírica, da extrema eloquência com a grande arrogância. Resta apenas desorientação.

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quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

"Faz parte do meu show"

“Faz parte do meu show”. Foram essas as últimas palavras dela antes de bater a porta, deixando a caixa com a coleção de CD’s no chão. Sim, porque sempre tem aquela maldita propriedade conjunta para materializar a ausência. E ele que achou que o fim nunca viria. E que se viesse, ao menos seria mais solene.
De qualquer forma, acabou assim: acabando. Ela e sua inquietação cansaram. E ele, ajoelhado, pedindo que não fizesse isso, ele sabia que gostava mais dela do que ela dele, mas não se importava. Mendigar migalhas de atenção, tudo OK: crescera ouvindo músicas de rock ultra-românticas e lendo poetas franceses.
Óbvio que ela nem deu ouvidos. Só disse que ia sumir e como é que é mesmo? “Faz parte do meu show”. Isso, que iria sumir porque fazia parte do show dela. E ele não entendeu como o show poderia acontecer na ausência da artista. Talvez por isso tenha sempre sofrido por amor. Por não entender.
E depois só começou a chorar. Como criança, como bebê. Pegou um dos CD’s na caixa. Olhou a cara de Chico Buarque no encarte. Quis rasgá-lo. No fim, talvez nem gostasse tanto assim dele. Começara a ouvir compulsivamente por causa dela.
Mudara tanto com a relação. Só ele. E ela apenas vivia dizendo que o mundo que se explodisse, que não ligava. Bastavam ela e o Chico e ela e seus filmes do Leste europeu que ninguém assiste e ela e sua família estranha e ela e seus cachorros e ela e suas ânsias. Era muito ela.
Ele gostava. No fim, ele morria de medo do resto do mundo. Ela, fingindo não ligar ou não ligando de fato, preenchia tudo. Tudo bem que não sobrasse nada para ele. Não era acostumado à idéia de habitar espaços dos outros, embora os outros sempre habitassem os seus.
No fim, Chico e ela ganharam. Pôs para tocar “Eu te amo”, enquanto reposicionava os velhos e empoeirados discos na estante. E quando soaram os primeiros versos daquela ladainha auto-piedosa sobre a fusão irreversível com o ser amado, ficou mais irritado. Quase insano. Depois, de novo, apenas triste. Voltou a chorar.
Foram meses desse jeito. Bebia com os amigos, reclamava que ela não o queria. E que tudo lembrava ela: os cachorros, a família, as ânsias e até os filmes do Leste europeu que só ela via e que depois ele começou a assistir também. Público: duas pessoas. Ela, por ser única e diferente. Ele, por ser inflexível em sua devoção. O marketing até que não era ruim.
Tempos depois, ela acabou. Simples assim. Sem entender por que, ele acordou livre. Ele. Apenas ele. Um pouco diferente, para falar a verdade. Gostava de algumas coisas que ela o ensinara a gostar. Ia a alguns lugares que descobriram juntos. E tinha cachorros. Mas tudo isso existia por si só: ela não habitava mais cada recanto da vida dele.
É num desses dias comuns que, tarde da noite, a campainha toca, o som quase abafado pela música alta. Ele abre a porta com cautela, quando uma conhecida voz invade a casa e se instala de novo: nos cachorros, nos velhos CD’s, nos filmes europeus e até nos versos que saíam do rádio. Suas primeiras palavras: “Faz parte do meu show.”

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