Alguma utilidade?

Apenas um pouco do que escrevo. Gotas da pretensão que assombra a juventude: a maldita idade lírica, da extrema eloquência com a grande arrogância. Resta apenas desorientação.

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sexta-feira, 3 de junho de 2016

Pôr do sol sem tomar fôlego

Life has come a long way since yesterday I say
And it’s not the same old thing over again I say
(Ziggy Marley – True to Myself)

Para você

                Foi capturado por uma imagem: o pôr do sol sobre o mar, que o mundo roesse suas velhas engrenagens lá fora e ao seu redor, que sua pureza já tivesse se esvaído e pouca ilusão restasse sobre si mesmo e que o pôr do sol e a praia fossem solidão e melancolia tão somente, ele jamais dexaria de gostar demais do laranja que envelhecia e sumia longe,  corria embora do mar e da vista, contando mais da passagem do tempo do que todos aqueles anos abarrotados de cansaço sobre seu ombro, pois de cansaço ele entendia, ele  que vivia sempre cansado, não sabia quando comecou, nem por que não passava, sequer gostava do próprio cansaço, até porque entendia seus privilégios e era grato por eles, mas no fim sempre venciam o tempo e a noite, aquela certa falta de vida pelo excesso dela mesma, a sensação de ter deixado de pensar sobre várias coisas que ele devia ter pensado no dia, a certeza de estar se distanciando de si mesmo e da própria humanidade: ah, isso seria curado pelo pôr do sol sobre o mar, a vida se alongando mais do que a realidade permitia, a preguiça lírica renovando certezas perdidas, mas nada disso sozinho, não sozinho, nem existiria tal ideia e tal fenômeno se fosse talhado apenas para um, isso só com você, porque você é também o pôr do sol sobre o mar, embora seja vivo e se mova para longe da costa, você também sabe bem dos tempos que se alongam, de toda energia que se perde quando se está longe da delicadeza e de toda beleza que não se vê quando vivemos de costas encostadas um com o outro, sem jamais nos olharmos nos olhos, sem jamais fitarmos o grande halo laranja sobre o mar, ignorando a vida que só é intensa e forte quando assistimos a esse espetáculo juntos, quando contemplamos a intensidade de estar em nós, já que então podemos nos perder um pouco na ilusão necessária de que recuperamos todo tempo perdido e não haverá mais aquela imensa fadiga dos poucos muitos anos já gastos sem chegar a lugar nenhum, e  todo tecido de vida apodrecido por divertidas risadas cínicas é renovado e, por alguns minutos, podemos nos fingir certos de que a vida é tão larga e generosa como a imensidão azul salpicada de laranja febril, o vento leve acariciando nossa face, o mar infinito no qual nós cabemos, e, por óbvia extensão, o mundo inteiro também.

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